segunda-feira, 23 de março de 2009

Ditaduras ditam, não pedem – Parte II

Não rever a Lei de Anistia, isentando de punição os que, a serviço do Estado ditatorial, cometeram crimes de tortura, morte e ocultação de cadáver é uma forma de apagar a história. Os crimes são imprescritíveis e passíveis de penalidades, independente de quantidades. Pouco importa que tenham sido 635 mortos no Brasil, contra 30.000 na Argentina e 3.200 no Chile. Tivéssemos uma única morte e ainda assim teríamos que apurá-la até o fim sob pena de continuarmos, geração após geração, a sermos responsabilizados pelo nosso passado pretoriano. Reconciliação, aqui, significa remexer o passado em busca de paz no presente.

O que importa é que o Estado usou seu poder de coerção para aniquilar pessoas. Disso, não se pode olvidar. Mas, se soubermos em que circunstâncias aconteceram poderemos, então, aceitar que a ditadura pertence ao passado. Não adianta pagar polpudas quantias, a título de indenização as famílias das vítimas, e impedir que a verdade venha à tona. Muito já se ouviu que melhor é não reabrir as feridas. Tivessem elas cicatrizado, o golpe de 64 seria uma data histórica. Como o processo de transição da ditadura para a democracia foi (está) incompleto, os mortos e desaparecidos do regime militar ressurgem como renitentes espectros.

O Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se posicionar sobre os limites da Lei da Anistia, i.e., quem ela perdoou e o que acontecerá com quem ela não absolveu. A Advocacia Geral da União (AGU) afirma que “estão perdoados os crimes de tortura cometidos durante a ditadura”. Bem ao gosto de setores do governo, aferrou-se a tese de que a Anistia é "ampla, geral e irrestrita". E vai adiante, defendendo que os delitos cometidos durante a ditadura prescreveram e, concordando com Gilmar Mendes, que punir torturadores traria insegurança jurídica ao país. A AGU parece temer que os acusados não aceitem passivamente serem julgados.

Na raiz do problema está o fato de que na transição, da ditadura para a Nova República, estimulou-se a distorção de conceitos da lei, de que se queria ocultar crimes e manter a impunidade. Como o último governo militar, que encaminhou a lei da Anistia ao Congresso, não reconhecia a prática de delitos como tortura, então eles não se encontram na gênese da lei?

O governo está dividido e isso dá insegurança. De um lado, pela punição, estão Tarso Genro e Paulo Vannuchi. Do outro Nelson Jobim, porta voz da caserna, diz que a anistia é fruto de uma negociação entre sociedade civil e regime militar. Lembra um pacto para não haver revanchismos de ambos os lados, onde o lema era esquecimento, e que só assim foi possível a democracia..

Para a AGU as convenções e tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, que têm a tortura como imprescritível subordinam-se à Constituição Federal, i.e., não interessa posições assumidas no passado se elas estão em desacordo com leis atuais. A AGU defende a União no processo aberto pelo Ministério Público Federal para punir os militares reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Maciel por tortura, morte e ocultação de 64 cadáveres durante a ditadura. E assume a defesa deles alegando que a anistia é factual e impessoal – não podendo ser personalizada.

No governo os favoráveis a punição são minoria. A eles se junta a ministra Dilma Rousself, por ser ex-presa política. Mudará de opinião quando estiver em campanha? Com a AGU e o Ministro da Defesa estão a Controladoria Geral da União e o Itamaraty. E, óbvio, o presidente Lula que, por atos, deu provas que concorda com Jobim, portanto, com os militares.

Dilma afirma que na Lei de Anistia não foram contemplados os agentes que, durante a ditadura, cometeram lesão corporal, estupro, homicídio, ocultação de cadáver e tortura. Jobim diz que não dá para responsabilizar pessoas pelos delitos. Quer passar uma borracha na história, pois (SIC) "nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse período negro da nossa história poderá contribuir para o desarmamento geral, desejável como passo adiante no caminho da democracia".

A União é ré na questão da abertura dos arquivos da ditadura. Já foi sentenciada a tornar público documentos do período. Mas, a questão é complexa. Faltando poucos dias para Lula ser empossado, FHC alterou a legislação sobre o acesso público a documentos oficiais. Ampliou para 50 anos o prazo de divulgação de documentos ultra-secretos e oficializou o sigilo eterno, possibilitando, ainda, que uma Comissão Interministerial (CI) renovasse o prazo de confidencialidade sem restrições de tempo – um claro e absurdo retrocesso político.

Lula alterou a lei, mas manteve sua essência autoritária. Reduziu o prazo de divulgação dos documentos ultra-secreto de 50 para 30 anos, mas prevendo uma renovação por mais 30. Manteve a CI e o sigilo de documentos que possam ameaçar a soberania nacional. Numa palavra, ao meio-século imposto por FHC, acresceu mais 10 anos. Sob um verniz democrático, temos uma espessa camada pretoriana que impede a sociedade civil de ter acesso às informações.

Porque FHC e Lula, que concordam que nossa democracia está consolidada, não caminharam no mesmo sentido da Argentina, por exemplo? Se não temos mais ameaças de um revés autoritário só nos resta abrir os arquivos da ditadura e revolver nosso passado autoritário.


Março/2009.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Ditaduras ditam, não pedem – Parte I.

"Portar máscara durante longo tempo estraga a pele"
Monika Zgustova.


Emílio e Augusto, presidentes quando ditaduras eram comuns na América Latina, conversavam quando aquele perguntou a este se era capaz de torturar, matar e ocultar o corpo de um dissidente político. Adiantou que o faria para calar a oposição e permanecer no poder. Augusto não titubeou e assentiu. Emílio, então, indagou se ele faria o mesmo com 30.000 pessoas. Augusto, indignado, retrucou: “O que você pensa que sou?” Emílio retorquiu: “Já foi definido o que somos meu caro. Vamos nos deter nos métodos e quantidades”.


Certo, o diálogo é surreal. Mas, se há quem discuta se ditaduras são brandas ou duras, ele poderia sim ter sucedido. Com premissas equivocadas, termos diferentes se equipararam. Se tivemos um governo constitucional deposto; se se cassou mandatos e o Parlamento e o Judiciário eram subjugados; se o governo ditava Atos Institucionais e decretos-lei; se partidos foram extintos; se não havia liberdade de imprensa, associação e expressão; se pessoas eram pressas, torturadas e mortas. Então, rogo, não tergiversemos – no Brasil, entre 1964 e 1985, tivemos uma DITADURA.


Até criou-se o neologismo “ditabranda”. Stanislaw Ponte-Preta, se vivo, teria mais uma para seu FEBEAPÁ – Festival de Besteiras que Assola o País. Reflitamos se importa discutir se a ditadura no Brasil foi mais ou menos branda do que a do Chile ou da Argentina. Só se é ditatorial a partir de certo número de mortes provocadas? Pode-se aniquilar opositores e seguir democrático? Importa os prejuízos sentidos até hoje, não se a dita foi branda ou dura.


É factível classificá-la pelas fases em que os militares, divididos entre “linha dura” e “moderados”, revezaram-se no poder. Mas, o comedido Geisel defendia aniquilar opositores para manter, literalmente, a ordem e o progresso. Em “A ditadura derrotada” Elio Gaspari reproduz um diálogo entre Geisel e seu ministro Dale Coutinho que dizia que as coisas só melhoraram quando começaram a matar. E Geisel, que comandou a liberalização do regime e dizia-se contra a tortura, emenda: “Esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser”. Seu interlocutor segue o raciocínio: “Eu fui obrigado a tratar esse problema em São Paulo e tive que matar”. (Gaspari: 2003, 324). Esses eram os da “ditabranda”! Imagine-se o que não diriam os da ditadura. Como se vê o dilema é falso! Vamos, então, ao que realmente interessa.


A muito alterco sobre a recorrência do tema ditadura militar, 24 anos após o seu fim. Tratamos o golpe de 64, o regime autoritário e suas conseqüências como se estivéssemos em 1985. Qual o problema? Nosso passivo pretoriano não foi contabilizado ao contrário, por exemplo, da Espanha que impôs um controle civil sobre os militares após a ditadura franquista. Temos uma agenda de trabalho a cumprir: a Lei da Anistia deve ser revista; os que, a serviço do Estado, torturaram e/ou mataram devem ser punidos; e os arquivos do antigo Serviço Nacional de Informação precisam ser definitiva e totalmente postos a disposição de quem quer que seja.


O Ministro Gilmar Mendes, reverberando outras vozes, disse que revisar a Lei da Anistia traz instabilidade ao Estado de Direito. Não seria investigando crimes e punindo culpados que asseguraríamos o Estado de Direito e a democracia? Nossas fragilidades institucionais impedem uma varredura nos atos do regime militar. Comparativamente, democracias eleitorais como a nossa reviram suas ditaduras e em nenhuma delas se viu a derrocada do Estado de Direito.


Na Argentina a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas investigou os crimes da ditadura. Membros das 4 juntas militares, que presidiram o país entre 1976 e 1983, foram julgados e até condenados. A Marinha admitiu que sequestrou, torturou e assassinou cidadãos. Houve até instabilidade institucional, mas não quebra do Estado de Direito.


Desde o governo de Nestor Kirchner, com orientação política próxima a do Presidente Lula, viu-se 800 processos reabertos, 534 pessoas processadas e 378 presas. Agora, dois ex-oficiais do Exército foram condenados a prisão perpétua, acusados pelo seqüestro, tortura e desaparecimento de três pessoas. Note-se que o Executivo e o Judiciário pelejam sobre a forma dos julgamentos, mas isso não impediu o andamento de investigações e processos. Também não houve agitações nos quartéis e muito menos quebra do Estado de Direito.


Nos seus 7 anos a ditadura argentina matou 30.000 pessoas. Nos Brasil, foram 635 mortos em 21 anos. Os militares de lá têm bem mais coisas a esconder, mas isso não dificulta o empenho dos argentinos em resolver seu passivo autoritário. Os julgamentos dos militares portenhos se dão na justiça federal, utilizando-se o código penal. No Brasil, os militares continuam a ter a Justiça Militar como foro, i.e., são julgados pelos seus pares. Como se vê a questão não se restringe a quantidades, e sim a substância que se quer que a democracia tenha.


No Uruguai o parlamento revogou simbolicamente a lei que anistiou militares torturadores. No Chile, a Comissão de Verdade e Reconciliação revolveu a ditadura Pinochet. O Exército e a Marinha admitiram que utilizavam a tortura em presos políticos. O Chile tem hoje uma democracia bem desenvolvida. Em El Salvador a Comissão da Verdade forçou o Exército a se responsabilizar pelo massacre de El Mozote e na Guatemala uma Comissão de Esclarecimento Histórico responsabilizou militares pelo genocídio contra comunidades indígenas. Nem por isso, estes países voltaram ao autoritarismo.


Houve quem se opusesse a estas investigações. Em geral, os que participaram ou se beneficiaram das ditaduras. Tal qual Gilmar Mendes, falaram em ameaças ao Estado de Direito. Na Argentina e no Chile só se propôs reconciliação (não esquecimento) quando os fatos foram admitidos e os culpados começaram a serem punidos. É assim que o Estado de Direito sobrepor-se-á ao “direito” da força. No Brasil, o que se pretende é um projeto de olvidamento nacional.


Após o julgamento de Nuremberg, tentou-se ocultar as atrocidades nazistas. O que fez Hannah Arendt afirmar que "Os alemães vivem da mentira e da estupidez". Foi só quando parou de dissimular suas culpas que a Alemanha conseguiu passar a limpo seu pretérito totalitário. Hoje, ela não é mais responsabilizada pelo que houve em que pese os museus sobre o holocausto existirem para que ninguém esqueça. Como afirmava Walter Benjamin, não se passa borracha na história. Tentativas de fazê-lo resultam em atrocidade intelectual, maculada de falsidade e mentira.

Continua em breve...

quarta-feira, 11 de março de 2009

45 ANOS DO GOLPE MILITAR DE 1964

Os dois artigos abaixo, publicados na Folha de São Paulo, mostram lados opostos da discussão, recorrente, sobre o golpe militar de 1964 e a instalação do Estado autoritário e suas consequências para nossa atual (semi)democracia. Este ano, completamos 45 anos do golpe. A partir de agora vou colocar uma série de artigos que me parecem interessantes sobre esta questão. Daqui alguns dias sai minha análise sobre este estado de coisas e poderá se ver com quem concordo.


Ditadura à brasileira - MARCO ANTONIO VILLA
Folha de São Paulo – 05 de março de 2009

É ROTINEIRA a associação do regime militar brasileiro com as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai). Nada mais falso. O regime militar brasileiro teve características próprias, independentes até da Guerra Fria. Fez parte de uma tradição anti- democrática solidamente enraizada e que nasceu com o positivismo, no final do Império. O desprezo pela democracia foi um espectro que rondou o nosso país durante cem anos de república. Tanto os setores conservadores como os chamados progressistas transformaram a democracia em um obstáculo à solução dos grandes problemas nacionais, especialmente nos momentos de crise política. O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos. Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições para os governos estaduais em 1982. Mas as diferenças são maiores. Enquanto a ditadura argentina fechou cursos universitários, no Brasil ocorreu justamente o contrário. Houve uma expansão do ensino público de terceiro grau por meio das universidades federais, sem esquecer várias universidades públicas estaduais que foram criadas no período, como a Unicamp e a Unesp, em São Paulo. Ocorreu enorme expansão na pós-graduação por meio da ação do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), especialmente, e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), em São Paulo. Ou seja, os governos militares incentivaram a formação de quadros científicos em todas as áreas do conhecimento concedendo bolsas de estudos no Brasil e no exterior. As ditaduras do Cone Sul agiram dessa forma? A Embrafilme -que teve importante papel no desenvolvimento do cinema nacional- foi criada no auge do regime militar, em 1969. Financiou a fundo perdido centenas de filmes, inclusive de obras críticas ao governo (o ministro Celso Amorim presidiu a Embrafilme durante o regime militar). A Funarte foi criada em 1975 -quem pode negar sua importância no desenvolvimento da música, das artes plásticas e do teatro brasileiros? E seus projetos de grande êxito, como o Pixinguinha, criado em 1977, para difundir a música nacional? No Brasil, naquele período, circularam jornais independentes -da imprensa alternativa- com críticas ao regime (evidentemente, não deve ser esquecida a ação nefasta da censura contra esses periódicos). Isso ocorreu no Chile de Pinochet? E os festivais de música popular e as canções-protesto? Na Argentina de Videla esse fato se repetiu? E o teatro de protesto? A ditadura argentina privatizou e desindustrializou a economia. Quem não se recorda do ministro Martinez de Hoz? Já o regime militar brasileiro estatizou grande parte da economia. Somente o presidente Ernesto Geisel criou mais de uma centena de estatais. Os governos militares industrializaram o país, modernizaram a infraestrutura, romperam os pontos de estrangulamento e criaram as condições para o salto recente do Brasil, como por meio das descobertas da Petrobras nas bacias de Santos e de Campos nos anos 1970. É sabido que o crescimento econômico foi feito sem critérios, concentrou renda, criou privilégios nas empresas estatais (que foram denunciados, ainda em 1976, nas célebres reportagens de Ricardo Kotscho sobre as mordomias) e estabeleceu uma relação nociva com as empreiteiras de obras públicas. Porém, é inegável que se enfrentaram e se venceram vários desafios econômicos e sociais. É curioso o processo de alguns intelectuais de tentarem representar o papel de justiceiros do regime militar. Acaba sendo uma ópera-bufa. Estranhamente, omitiram-se quando colegas foram aposentados compulsoriamente pelo AI-5, como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Emilia Viotti da Costa, entre outros; ou quando colegas foram presos e condenados pela "Justiça Militar", como Caio Prado Júnior. Muitos fizeram carreira acadêmica aproveitando-se desse vazio e "resistiram" silenciosamente. A história do regime militar ainda está presa numa armadilha. De um lado, pelos seus adversários. Alguns auferem altos dividendos por meio de generosas aposentadorias e necessitam reforçar o caráter retrógrado e repressivo do regime, como meio de justificar as benesses. De outro, por civis (estes, esquecidos nas polêmicas e que alçaram altos voos com a redemocratização) e militares que participaram da repressão e que necessitam ampliar a ação opositora -especialmente dos grupos de luta armada- como justificativa às graves violações dos direitos humanos.




História à brasileira - JANIO DE FREITAS
Folha de São Paulo – 08 de março de 2009

UMA VERGONHA , ao menos uma, o Brasil tem. É um tal de esconder ou falsificar a própria história, que este vício passa, ele próprio, a ser história. Só agora, passados 70 anos, liberam-se atas de reuniões do Conselho de Segurança Nacional da década de 30 -mas depois de extirpar-lhes mais de 400 linhas. As linhas encobertas são os esconderijos das verdades que mais importam para o conhecimento das posições, circunstâncias e decisões do momento em questão.Na entrega das atas, que vão de 1935 a 88, o seu guardião nos últimos anos, ministro de Segurança Institucional, general Jorge Felix, deu a justificativa oficial para os vetos: "Os povos são muito emocionais. Poderíamos ter constrangimentos com países vizinhos por declarações feitas nos anos 30". Na prática, desde então são passadas três gerações. Como os demais países, o Brasil atual pode, eventualmente, explicar declarações (no caso, em reuniões fechadas) do passado, pode desautorizá-las, mas não pode responder por elas. Mesmo que expressem, mais do que opiniões pessoais, propósitos hostis. Como foi o caso do ministro da Justiça que propôs, na década de 60, a criação de um episódio bélico com o Paraguai (começava o assunto Itaipu), como pretenso recurso para unir a opinião pública brasileira em torno dos militares.Os aspectos mais decisivos no desencadear do golpe de 64 tornam-se progressivamente disponíveis graças à abertura de arquivos dos Estados Unidos. O embaixador Lincoln Gordon, até hoje vendido aqui como pessoa íntegra e bem intencionada em relação ao Brasil, já em seu primeiro encontro com Kennedy, na Casa Branca, propôs um golpe aqui. Isso se sabe por recentes liberações de documentos nos EUA, onde já o governo Kennedy está escancarado e até material do pequeno Bush começa a estar ao alcance público.O que já era o cofre inexpugnável da documentação brasileira, ganhou de Fernando Henrique um reforço de obscurantismo estarrecedor. O "intelectual príncipe da sociologia" passou a duração do sigilo de documentos oficiais, de 20, 30 anos, para três gerações nos casos mais brandos e, em outros, até a infinidade dos tempos. Já no governo Lula, Fernando Henrique quis explicar-se com a afirmação de que assinou o ato "sem medir as consequências".Esquecido do que disse então, Fernando Henrique traz nova narrativa, reproduzida por Fernanda Krakovics e Luiza Damé no "Globo": assinou o decreto como ato "de rotina", ao recebê-lo "da secretaria que tratava de assuntos militares", o que caracterizou, "seja um descuido burocrático, seja má-fé de alguém não especificado".Não especificado? Pois sim. O tempo não diminuiu a inverdade de Fernando Henrique para livrar a sua face comprometida como nenhuma outra. É grosseiramente claro que nenhum professor de sociologia, história ou afins deixaria de perceber as consequências óbvias da ampliação de sigilos documentais. Nem assinou como ato de "rotina" que, por descuido ou má-fé, o pegou desprevenido.Tão logo o decreto obscurantista foi divulgado, ex-colegas de Fernando Henrique na universidade e muitos outros, inclusive no exterior, reagiram pelos meios de comunicação. Se vítima de inadvertência, Fernando Henrique teria emitido novo ato, com a correção do anterior, como fez inúmeras vezes.Pressionado, Lula afinal se dispôs a alterar a regra de Fernando Henrique. Só, porém, para dizer que a alterara, porque até o sigilo infinito permaneceu.Não é por acaso que um professor universitário de história faça a afirmação, por exemplo, de que "não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural". Deu-se no artigo "Ditadura à brasileira", de Marco Antonio Villa, Folha de 5.mar.09.Os militares derrubam um governo constitucional, prendem aos milhares pelo país afora, cassam mandatos parlamentares legítimos nas três instâncias legislativas; impõem ao Congresso subjugado a escolha entre três ou quatro generais, para figurar como presidente; governam por ato institucional e decreto-lei; extinguem os partidos; excluem do serviço público, das autarquias e estatais os opositores reais ou supostos, e, para não ir mais longe, instituem a espionagem no país todo. E, fato muito esquecido hoje em dia, iniciam a tortura nos quartéis e os assassinatos. Início bem comprovado, por exemplo, pela foto de Gregório Bezerra puxado por corda no pescoço em Recife. Ou pela celebridade de pessoas como o capitão Zamith, acusado da morte por tortura de um estudante de medicina na Vila Militar do Rio (tema da edição mais importante, até hoje, de "Veja"), e do sargento Raimundo, torturado no Exército e jogado no rio em Porto Alegre, morto ou para morrer.Mas "não é possível chamar de ditadura" ao domínio do país por tal regime. Então só pode ser "a democracia" dos historiadores à brasileira. Até por ter "movimentação político-cultural", permitida entre 64-68 quando não incomodava o regime, servindo mesmo como válvula de escape, e reprimida com vigor quando incomodava.Os historiadores à brasileira não sabem que as ditaduras vão até onde lhes é vitalmente necessário, e enquanto podem fazê-lo. A diferença entre elas não é a sua essência, nem a sua prática: é a medida do necessário.

domingo, 8 de março de 2009

Em nome do Pai

Quem escreve vai, com certeza, me entender. Este é um daqueles artigos que agente diz: "puxa, a autora disse tudo aquilo que eu gostaria de ter dito!". Vale mesmo a pena ler, sobre mais esta lambança da medieval Santa Madre.

ELIANE CANTANHÊDE

BRASÍLIA - Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, quero fazer um agradecimento público ao arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho.Ele calou sobre o crime hediondo de um padrasto que estuprava a enteada desde os 6 anos de idade e a engravidou de gêmeos aos 9. Mas excomungou a mãe da menina e a equipe médica pelo aborto que tenta salvar sua vida, sua essência de criança, sua capacidade de ser feliz. Essa inversão produziu excelentes resultados, no melhor momento: mobilizou a imprensa local e nacional e indignou milhões de pessoas na semana que antecedeu o Dia da Mulher, expondo o quanto o fundamentalismo religioso pode ser não apenas retrógrado mas cruel, desumano e, em certa dose, também ridículo, em casos que envolvem de fato vida e futuro. Os assim, particulares. Ou os coletivos, como a pesquisa de células tronco.

Foi uma verdadeira aula, contra o arcebispo, a favor da menina, para mulheres, homens, jovens, velhos, todos os que olharam para a grande vítima horrorizados, chocados, com uma piedade que faltou justamente ao "homem de Deus".

Até a CNBB teve dificuldade para respaldar sua atitude. Numa nota visivelmente constrangida, condena antes o estuprador (que dom José nem sequer citara), reitera a posição contrária ao aborto e não faz uma só defesa da excomunhão.

Para dom José, estuprar crianças é pecado, mas não muito. O que não pode é tentar corrigir as sequelas do estupro, acolher aquela menina, salvar-lhe o corpo, talvez a mente, garantir-lhe o futuro. Para ele, portanto, aborto é mais grave do que estupro. Os médicos que o realizaram são piores do que o suspeito de pedofilia em Catanduva (SP).

Trata-se do típico caso em que a igreja anda para um lado, enquanto o mundo e as pessoas, para o outro, em sentido contrário. É assim que seus pastores perdem seus rebanhos para as evangélicas, as espíritas, as umbandistas. Ou para o ateísmo, puro e simples.