segunda-feira, 5 de abril de 2010

Disfunção Institucional.

Habilitado, tardiamente, ao Sistema Nacional de Trânsito, estou a me agastar na política de terra arrasada que é o trânsito em nossas cidades.


Dirigir é difícil, não impossível. Apreender a legislação de trânsito é fácil. Intricado é enlear-se na teia do Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN) para obter a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Lá, enfrentando a burocracia e o caos administrativo, sente-se na pele a “Lei de Gerson” - essa instituição informal em nós engastada. Buscar vantagens, ao largo da ética, é, no DETRAN, um vício. Em tempo, a tal lei surgiu em 1976 quando o jogador Gérson protagonizava comercial para os Cigarros Vila Rica. A marca seria vantajosa por ser a melhor e ter um módico preço e ele dizia: “Gosto de levar vantagem em tudo. Leve vantagem você também!”


Instituição informal é o procedimento criado, e sancionado, fora dos aparelhos de Estado que cumpre o papel dele mediante a promessa de resultados eficazes. O informalismo é uma maneira, deliberada, de suplantar as instituições formais. Dá-se quando o agente público assenta que descumprirá, parcial ou totalmente, suas funções. No DETRAN, vêem-se funcionários negligenciando funções para promovê-las informalmente, tal qual o policial que se abstém de cumprir seu papel para prestá-lo em uma empresa de segurança privada.


Em um Centro de Formação de Condutores vi a dissimetria entre o que se ensina e o que se faz no trânsito. Não que seus instrutores estejam errados – é a realidade que está fora do prumo com quase 1 milhão de acidentes, cerca de 60.000 mortos e 8 bilhões de perdas materiais ao ano.


No CFC trata-se de cidadania e meio ambiente, conceitos aplicáveis em sociedades com capital social em patamares aceitáveis e este não é o nosso caso. Nele se ensina que dirigir defensivamente é prevenir-se contra o mau motorista e condições adversas. Trata-se até de como proceder altruisticamente. Mas, a realidade é outra. Temos que parar em certos cruzamentos e correr o risco de ter o carro tomado. O que fazer? Desobedecer a sinalização, claro. Parece mesmo que estamos sendo preparado para dirigir na Dinamarca, onde as instituições funcionam, não no Brasil onde a instituição informal “molhar a mão do guarda” é vigente.


Vejamos um quadro surrealista que Gabriel Garcia Marques não imaginária em sua Macondo. O total descompasso entre teoria e prática se descortina no DETRAN. Primeiro, enfrenta-se uma mal ajambrada fila por quase cinco horas para fazer um cadastro em 10 minutos. Depois, nova fila, mais uns 30 minutos, para a foto que comporá a CNH. Nestas filas detecta-se o que faz a vida burocrática do DETRAN pulsar. Naquela fúnebre marcha, por duas vezes, apareceram “prestativos” despachantes se oferecendo para me tirar da fila e levar-me ao atendente mediante a quantia de 70,00 reais. Imaginei que se dez, quinze ou vinte pessoas aceitassem tal proposta criar-se-ia uma segunda fila composta pelos que “furaram” a primeira.


No DETRAN, até para se obter uma informação tem-se dificuldade. A lógica é: se você quer bom atendimento, pague por ele! Esqueçamos as taxas auferidas ao Estado. Refiro-me as quantias informais que vão sendo solicitadas a cada facilidade oferecida. Existe, ainda, um mórbido prazer, dos que “habitam” o DETRAN, em ver infelizes, como eu, quarando naquela fila insana.


Lá, parece não se gerenciar as atividades. Porque dois procedimentos contínuos não podem ser feitos no mesmo quiche? Porque obrigar o cidadão a ficar numa fila, por quase cinco horas, apenas para que ele informe dados pessoais? Para irritá-lo até o ponto em que ele ceda as “vantagens” oferecidas pelas tais despachantes. Convenhamos, é tentadora a oferta de livrar-se de uma fila humilhante mediante um pagamento informal.


Mais um exemplo, hilário, da premeditada desorganização do DETRAN. Cedo, pessoas se aglomeram ante o portão central. Seguranças tentam organizá-las, mas o que importa é ser ágil. A cena é patética: o portão se abre e pessoas, carros e motos disputam uma frenética corrida pelos melhores lugares. Mas, os que chegam cedo são ultrapassados pelos que compram os primeiros lugares das filas – os mesmos que, tal qual Gerson, levam vantagem em tudo por acreditarem que “o mundo é dos mais espertos”, como me disse um petulante futuro motorista na lúgubre fila.


Feito o cadastro, vamos ao psicotécnico que, de tão antiquado, não afere se estamos de posse de nossas faculdades mentais. Depois, nos é dado um questionário sobre o uso de medicamentos e tratamentos de saúde e quer-se saber sobre o uso drogas ilícitas e consumo de álcool. O que acontece se a resposta for positiva? Susta-se a expedição da CNH? Depois de duas horas em mais uma fila fui para o exame oftalmológico. Usava meus óculos de grau e mesmo assim a doutora perguntou-me: “tem algum problema de vista?” Eu, pasmo, assenti. O exame durou cerca de 20 segundos. Disse à doutora que não enxergava uma letra siquer das que apareciam no visor. Ela, impassível, ordenou que eu saísse. Fica a dúvida: o que seria necessário para ser reprovado neste exame? Usar bengala, óculos escuros e ter um cão-guia à mão?


Os conflitos de interesses pululam pelo DETRAN. Agentes de trânsito, policiais militares, funcionários, comerciantes, etc, são “facilitadores” que, de posse dos mecanismos da instituição, detém os informalismo. Utilizam-se de seus cargos e postos de trabalho para, mediante pagamento, encaminhar demandas à margem da estrutura institucional. Provocam, deliberadamente, a disfunção institucional para forçar o pagamento, “por fora”, dos serviços que teriam que oferecer publicamente e de boa qualidade.


A grande perversão a ser notada é que, no interior do DETRAN, funcionam informalismos que solapam a instituição formal, tornando-a não crível. Isso só contribui para que nossa democracia siga frágil, pois as instituições que lhe dão forma (e conteúdo) são continua e cotidianamente transpassadas por instrumentos anti-republicanos.



postscriptum: Prova inequívoca da disfuncionalidade institucional do DETRAN é que passei exatos vinte e cinco dias para receber minha CNH, quando deveria recebê-la em um prazo máximo de cinco dias. Quando busquei saber sobre o andamento do processo recebi a lacônica informação: “sua carteira encontra-se na sala de impressão”. Mas, me foi dito, também, que eu poderia apressar a expedição do documento mediante “um pagamento por fora”. Minha CNH não estava no tal Departamento de Impressão, mas sim no “departamento da informalidade”.


Abril/2010.