domingo, 6 de fevereiro de 2011

Deus como coisa útil


“Acreditar é mais fácil do que pensar.
Daí, existirem mais crentes do que pensadores”


A sociedade da informação requer espaços para anunciar suas novidades, curiosidades e produtos. As redes sociais, os blogs e os sites são os outdoors virtuais onde se diz o que bem quer. Mas, parece pouco, pois vemos automóveis anunciando de tudo.

Vemos pára-brisas declarando que o casal proprietário do carro está “CASADO PARA SEMPRE”. Desconhecem que relações, assim como carros, se sujeitam as ações corrosivas do tempo. E tem os que trazem os nomes de sua prole. Então, vemos as Danniellys, Thaysis, Davysons, Francyellys - grafados ao bel prazer e a revelia da nossa detratada língua portuguesa.

Têm autos com frases jocosas: “ANDO NESTE CARRO, MAS DEUS ME DARÁ UM CROSS FOX NOVO.” Além do bom humor, ela transparece que a pessoa só se vê feliz em um carro novo e que espera que Deus lhe dê um. Nunca vi um adesivo com o desejo de se ter um carro pela via do trabalho. Não entendo por quais motivos e mecanismo Deus daria um Cross Fox a seja lá quem for. Se pudesse pedir um carro a Ele quereria um Aston Martin (igual ao de 007). Duvido que Ele atenda logo quem tem lá suas reservas para com as religiões que falam em Seu nome.

Eis o problema: esperamos que Deus e/ou o Estado nos dê aquilo que bem poderíamos obter através do trabalho. Formados pela égide do escravismo, encaramos o trabalho como um pesado fardo a carregar. Assim, esperamos de outrem aquilo que podemos (e devemos) conseguir pelo esforço próprio. Em artigo, na Folha de São Paulo, Hélio Schwartsman, trata o Brasil como o “país da boquinha” e demonstra como as pessoas, categorias profissionais e empresas tentam “sequestrar a autoridade do Estado para impor-se a todos e garantir ‘o seu”. Aqui virou hábito não buscar se firmar pela excelência do trabalho e/ou pelo mérito. Vemos o Estado como um butim a se conquistar e Deus seria uma “coisa útil” da qual se aproxima para tirar proveito.

Vejo, também, frases que exprimem da repulsa aos políticos, passando pelas locuções subliminares que lançam candidaturas em períodos não eleitorais, até os desejos de “PAZ PARA O MUNDO”. E temos as assertivas emprestadas dos pára-choques de caminhões: “SUA INVEJA É A VELOCIDADE DO MEU SUCESSO”.

Mas, nada se iguala aos dizeres em que crenças são proclamadas. Temos menos a convicção de cada um e mais, muito mais, o fenômeno em que a fé, a religião e Deus são tratados de forma utilitária. As pessoas vão abraçando ramos do cristianismo para obter benesses. Vamos aos exemplos recolhidos, por mim e por prestativos colaboradores, em carros.

A mais vista das frases é a que atribui a Jesus Cristo uma fidelidade a toda prova – “JESUS É FIÉL”. Mas, a quê ou a quem Jesus é fiel? Não seriam os seguidores de Jesus que restituiriam lealdade a Ele e a seus ensinamentos? Mas, sendo justo, vi uma frase em que se estabelece uma via de mão dupla para com Ele: “JESUS É FIEL... E VOCÊ?”.

No entanto, temos aquela que recupera a via de mão única - “ATÉ AQUI NOS AJUDOU O SENHOR”, i.e., Jesus tem como função única ajudar seus seguidores. E os prosélitos de Jesus auxiliam em quê ou a quem? Nesta mesma linha temos: “DEUS CUIDA DE MIM”, onde Ele é privatizado e tem a função de tratar de uma só pessoa. Vi uma frase que é o cúmulo da prepotência: “TODOS ME SEGUEM, SÓ DEUS ME ACOMPANHA”. O indivíduo se vê como o centro, todos o seguem e Deus o acompanha por onde quer que vá. Mas, segundo o Dicionário Aurélio, “ir em companhia de” é a mesma coisa de seguir. Assim, até mesmo Deus marcha, caminha, persegue este motorista encarcerado em seu complexo de superioridade.

E existem as simplificações conformistas: “ORA QUE MELHORA”. Simples assim! Não precisa fazer mais nada. Basta orar e ficar sentado (ou ajoelhado) que tudo vai melhorar. O bom emprego (público, de preferência), o carro novo, a casa própria, o consumismo desenfreado, numa palavra a boa vida, acontecerão para o devotado crente automaticamente. Quisera fosse assim!

Mas, é bom não esquecer, as benesses divinas só são alcançadas mediante pagamento do dízimo, pois, segundo interpretações e/ou deturpações as “graças” só são alcançadas mediante pagamento, i.e., é dando que se recebe! E quem se utilizar de tal frase pode, constatando que a vida melhorou, afixar o seguinte em seu possante: “COM DEUS SOMOS MAIS QUE VENCEDOR”. Não deveria ser vencedores? Até nessa hora a língua portuguesa é achincalhada.

Em outra frase a preocupação gira em torno do eu: “SE JESUS VOLTASSE HOJE COMO EU ESTARIA?”. Não importa a volta Dele e sim como estará o fiel, pois o retorno de Jesus só deve significar algo para ele próprio. Sem contar que sendo Ele onipotente, onipresente e onisciente tornar-se-á desnecessário Seu regresso.

E vamos às frases onde Deus é mero instrumento para saciar interesses materiais. As mais famosas são: “PRESENTE DE DEUS”; “ESSE FOI JESUS QUE ME DEU”; “PROPRIEDADE EXCLUSIVA DE DEUS”. Por que Deus ou Jesus sairiam por aí distribuindo carros? Com que fins Eles seriam felizes proprietários de um veículo? Imaginemos quanto inverossímil é um deus que se preocupa em dar carros para seus seguidores.

A racionalização disso mostra que se adere a esta ou aquela Igreja para poder “ganhar” um carro, numa relação mercantil. É isso que se coloca para os futuros crentes – venha para nossa Igreja e terás tudo o que quiseres Você quer um carro novo? Assim seja! Mas, não esqueça, se deixar de pagar o dízimo estarás cometendo o maior de todos os pecados.

Uma abnegada colaboradora recolheu a seguinte frase: “RASTREADO POR JESUS”. Teria Ele um GPS para rastrear seus fiéis mais fiéis? Também me brindou com a pérola: “DEUS QUANDO QUER FAZ ASSIM”. Assim? Como? A frase tenta, implicitamente, provar que Deus só faz maravilhas para alguns poucos iluminados que crêem cegamente nele.

Li certa vez, não lembro onde e nem o autor, que “acreditar é mais fácil do que pensar. Daí, existirem mais crentes do que pensadores”. Eis outra mensagem subliminar, não pense, não reflita, apenas creia cegamente e você será “divinamente” recompensado.

Vão longe os tempos em que os fiéis queriam “apenas” o reino dos céus. Hoje, eles se “contentam” com um carro novo. Todos querem o reino de Deus, a salvação e seja lá mais o que for, mas é preciso lembrar que antes existe um período probatório aqui mesmo na terra. No dia do “juízo final” não importará ter um Cross Fox vermelho, mesmo que tenha sido dado por Deus. Na hora de “acertar as contas” com o Todo Poderoso serão os atos e as palavras distribuídos aqui na Terra que vão definir quem vai para o “Nosso Lar” e quem vai para o “Umbral”.

Fevereiro/2011.