domingo, 30 de abril de 2017

POBRE DE TI QUE NÃO TENS UM HERÓI PARA CHAMAR DE SEU!

O domingo amanheceu chuvoso, mas não achei ruim, pois a chuva é a mais bela manifestação da natureza. Deixei para ligar o computador mais tarde, pois hoje tinha Formula 1. Quando, finalmente, liguei o PC, para ver as notícias de sempre, me deparei com a manchete: "Cantor Belchior morre aos 70 anos" (...). 





Como em "Cinema Paradiso", quando Toto recebe a notícia de que Alfredo havia morrido e passa a lembrar de sua vida em sua pequena cidade, voltei no tempo e me vi em 1983 (ou seria 82 ou 84?) no Teatro Municipal de Campina Grande assistindo a um show de Belchior. A memória é falha, e isso depõem contra o historiador, mas tenho alguma impressão que estava num show do antigo Projeto Pixinguinha.


Sofram com a inveja!, mas eu não vi apenas este show de Belchior, pois foram umas cinco ou seis apresentações em Campina Grande e outras cidades. Belchior esteve sempre presente em minha vida. O "Dandy do Ceará" estava em nossas reuniões, assembleias e manifestações do movimento estudantil e nas aulas dos "cursos de humanas" da Universidade Federal da Paraíba (Campus II). Falávamos de política, filosofia, ideologia, religião, drogas, sexo e Rock in Roll (literalmente) ouvindo Belchior. Era a trilha sonora de nossas vidas!


Namorávamos, viajávamos, acampávamos, farrávamos (muito!) ouvindo "Como nossos país", "Galos noites e quintais", "À palo seco", "Dandy", "Fotografia 3x4", "Lira dos vinte anos", "Alucinação", "Tudo outra vez","Não leves flores", "Comentários a respeito de John", "Coração selvagem", "Saia do meu caminho", "Os profissionais", etc, etc, etc.


Certa vez, num acampamento, passei quatro dias cantando: "Se você vier me perguntar por onde andei/No tempo em que você sonhava/De olhos abertos, lhe direi/Amigo, eu me desesperava/Sei que assim falando pensas/Que esse desespero é moda em 76/Mas ando mesmo descontente/Desesperadamente eu grito em português". Ninguém aguentava mais eu, desafinadíssimo, acabando uma das músicas do meu herói tupiniquim. Um amigo já falecido, que tocava um violão divino, já sabia que quando eu pedia para ele cantar "Tudo outra vez", em nossas intermináveis rodas de violão, era porque havia chegado a hora de "apertar a tecla stand by".  


Não vou dizer coisas óbvias como: "não se fazem mais cantores e compositores como este!" ou "a música de hoje em dia é muito ruim, a do meu tempo era bem melhor!". Não vou ser ululante, pois não posso, em respeito ao meu herói, comparar sua época com um momento onde faz sucesso quem não canta, não compõem, não tem qualidade e muito menos cultura musical. 



O que posso fazer, e faço muito, é me orgulhar de ter assistido aos shows de Belchior, de ter comprado seus discos, de ter ouvido e cantado suas músicas sem me cansar. Me orgulho de dizer que ele (como Chico Buarque, Bob Dylan e os Beatles) é meu herói, pois, literalmente, fez minha cabeça. O que posso mais fazer, num dia tão triste como este, a não ser me orgulhar de ter um herói para chamar de meu? O que mais posso dizer a ti que não tem um herói para chamar de seu?



Tinha razão Renato Russo quando dizia:"É tão estranho, os bons morrem jovem". Belchior, nosso Bob Dylan (ou será que Bob Dylan é o Belchior dos americanos?), já não mais vivia neste mundo a pelos menos uns dez anos. Já há algum tempo habitava uma dimensão paralela que pouquíssimos conseguem atingir. Belchior era o mais jovem de todos os meus heróis, foi o que nunca envelheceu, que sempre se manteve fiel e coerente com as coisas de seu tempo.


Belchior teve várias mortes, a de ontem foi apenas mais uma delas, e nem foi a pior. Cruel mesmo é ver clássicos como Belchior sendo assassinados pelo mercado e pela sociedade diariamente. A morte de Belchior que mais me doeu foi quando ouvi um aluno de cerca de 17 anos dizer que nunca tinha ouvido falar "... neste tal de Belchior". 



Peço, em respeito ao meu herói, para que não o julguemos por suas atitudes, por ele ter sumido no mundo sem nada dizer, sem nos dar satisfação. 
Por mais que isso me doa, peço-lhes para aceitarmos que Belchior não mais queria ser incomodado, que queria ficar em paz! Não precisa ficar especulando porque ele não quis mais compor, cantar, fazer shows, ou porque abandonou sua vida familiar e profissional, deixando de pagar suas contas, e foi viver uma vida errante como se fosse um beatnik redivivo. Nada disso importa! Importa mesmo é sua obra imortal, clássica, que ficou e que está entre nós! Isso me basta e acho, apenas, que "... agora ficou fácil, todo mundo compreende, aquele toque Beatle I wanna hold your hand". 





segunda-feira, 24 de abril de 2017

Vivandeiras querem golpe para salvar a democracia


Em 1º de junho de 1950, Carlos Lacerda publicava editorial em seu jornal “A Tribuna da Imprensa” que reputo como o suprassumo da mentalidade antidemocrática. Dizia “o corvo”: "O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Inclementemente simples.

No Brasil era assim: onde se falasse em revolução logo se via golpe, assalto ao poder, intervenção militar. Lacerda liderava a União Democrática Nacional (UDN), uma espécie de PSDB só que bem mais conservadora e autoritária. Com seu libelo golpista, Lacerda expressava a impaciência de setores elitizados cansados de verem seus interesses represados pelo nacional-desenvolvimentismo. Fruto de uma sociedade desacostumada aos ritos democráticos, Lacerda pedia golpe ao invés de pedir votos para UDN.

O governo Vargas foi tumultuado, com a oposição implorando que os militares tomassem o poder, e Lacerda teve o desfecho autoritário que tanto ansiava em 1964. As ilações entre este período e o momento político que vivemos são inevitáveis. Hoje, como no passado, muitos acreditam que a força é solução única para nossas crises institucionais, pois nossa democracia representativa ruiu de vez. Fôssemos uma sociedade que cresse nos valores da democracia e não veríamos vivandeiras rondavam os quartéis.

Vivandeira vem do francês “vivandière” e significava (na Guerra de Canudos, por exemplo) a mulher que seguia a tropa levando mantimentos para os soldados. O jornalista Elio Gaspari, numa coluna para a Folha de São Paulo em janeiro de 2010, mostrou que o primeiro ditador/presidente do regime militar, marechal Humberto Castello Branco, chamava de vivandeiras os políticos que iam aos quartéis conspirar com a oficialidade. Dizia Castello: “São os que, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias ao Poder Militar”. Se déssemos o real valor que a democracia tem, vivandeiras seriam coisas do passado e não veríamos brasileiros vestidos de verde-e-amarelo (por cima do preto fascista que cultuam) pedindo aos militares para intervirem na ordem política e social do país. De fato, algo em torno de 30% dos brasileiros trocaria nossa frágil democracia por um regime de força.

Este cenário de crise se agravou por causa da corrupção mesmo que esta não seja causa e nem consequência daquela. Sim, temos uma moralidade seletiva, onde se escolhe como e porque ser ou não desonesto e onde políticos não são criticados pelo envolvimento em negócios escusos, mas por ter se deixado flagrar. Não indicaria, claro, as pedaladas fiscais do governo Dilma como fato gerador da crise, pois houve quem se gabasse, antes de 2014, de pedalar para não arrombar as contas. Até os pombos da Praça dos Três Poderes em Brasília sabem que pedaladas se tornaram motivo para impeachment como estratégia de quem não conseguiu chegar ao poder pelas urnas.

Estranho foi ver atores políticos e judiciais buscando a porta lateral do golpismo, calcados na mentalidade udenista, onde crises institucionais se resolvem com saídas de força. Não se buscou o golpismo tradicional, ativado pelas Forças Armadas, mas um ato que segue as regras da democracia. Podemos conviver com tamanho paradoxo? Ainda teremos que analisar a mãe de todas as contradições desse momento que é se usar os ritos da democracia, como a liberdade de expressão, para pedir o seu fim.

Em democracias consolidadas procedimento democrático é a água que jamais se mistura com o óleo da mentalidade autoritária. Mas, com a criatividade que temos para misturar água e óleo, exercitamos nossa mentalidade pretoriana sem ter que rasgar a Constituição. Tal qual em tempos idos vivandeiras seguem batendo à porta da caserna! Assim como se fez com Fernando Collor, na vã tentativa de mantê-lo no poder, e com Itamar Franco, para garantir que assumiria a presidência no impeachment de 1992, as Forças Armadas teriam sido sondadas para a destituição de Dilma Rousseff? O senador José Serra (PSDB) se referiu, entre os meses de julho e setembro de 2015, sobre a possibilidade de a crise descambar para uma intervenção militar ao comparar o momento com o ano de 1964. Serra, vivandeira de quatro costados, batia à porta do quartel. Parecia querer lembrar aos militares que seria hora deles tomarem as rédeas do poder.


A prova disso foi que o general do Exército Eduardo Villas Bôas teve que esclarecer o posicionamento da instituição que comanda. Numa entrevista à Folha de São Paulo (14/10/2015), negou a possibilidade de uma intervenção militar, mas admitiu que uma “crise social afetaria a estabilidade do país e isso diria respeito às Forças Armadas”. Ele chegou mesmo a dizer que: “E aí, nesse contexto, nós nos preocupamos porque passa a nos dizer respeito diretamente”.

Se a crise afeta a estabilidade do país e diz respeito às Forças Armadas, o que fazer então? Intervir na ordem social e política? Ou deixar que os civis ponham ordem no frege que eles mesmos causaram? Na entrevista, o Gal. Villas Bôas diz, numa provável resposta ao senador Serra, que é a “sociedade que tem que aprender com seus erros e ter consciência que cabe a ela solucionar esses problemas”. Mas, o general lembra que “as Forças Armadas têm que estar em condições de atender às demandas da população”. Ou seja, o Exército não pretende intervir para corrigir erros da sociedade, mas segue atento as demandas intervencionistas da população.

Nunca é demais lembrar que parte da população brasileira se mostra simpática a volta dos militares ao poder central do país, segundo pesquisas do Datafolha e do Ibope realizadas entre 2015 e 2016. É preciso atentar para os perigos de se clamar por intervencionismo. Nossa história nos exemplifica que não raras vezes vivandeiras terminaram sendo perseguidas pelos que tomaram o poder a força – Carlos Lacerda, a Igreja Católica e a classe média brasileiras que o digam.

O ímpeto golpista das manifestações de rua arrefeceu, mas o ativismo autoritário nas redes sociais segue firme, forte, bem articulado, mesmo que não disfarce uma contundente estupidez quando trata de nossa história política. Vejo sempre pessoas citando casos de corrupção para logo em seguida pedir aos militares para nos salvarem (SIC) “do horror de viver numa democracia”.

Se é verdade que os militares não estão interessados em fazer cumprir o artigo 142 da Constituição, é bem verdade, também, que parte da população cansou de viver sob os dilemas da democracia. O problema é que muitos não viveram os tempos obscuros da ditadura e se recusam a saber o que acontecia com os que se opunham ao regime militar. Parte dos brasileiros querem o bônus da ordem social e política, mas esquecem do ônus histórico que essa mesma ordem nos inflige.


domingo, 16 de abril de 2017

Temer confessa o golpe





Quando um presidente comete um "sincericídio"

O usurpador-mor da República Michel Temer admitiu (ou seria melhor dizer confessou) numa entrevista especial ao vivo, em rede nacional, que (SIC) “... Dilma Rousseff foi derrubada porque o PT não salvou o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), no Conselho de Ética da Casa”.


Não foi uma entrevista qualquer, uma fala ao acaso, ou mesmo uma dessas “conversas informais” que algum “desavisado” registra o áudio “por acaso”. Foi, isto sim, uma entrevista concedida em estúdio para o canal de televisão BAND transmitida simultaneamente para as rádios Bandeirantes e Band News FM, para o Canal Band News e para as redes sociais da emissora. Sem contar que o apresentador do programa, jornalista Fábio Pannunzio, deixou claro que a entrevista seria reapresentada pela emissora em outros horários. Estava tudo bem preparada, o presidente não foi pego de surpresa. Portanto, que não se venha dizer que foi um ato falho presidencial, pois ele quis sim dar a declaração baseado no fato de quem confia plenamente na impunidade.


Com uma surpreendente tranquilidade, com uma calma franciscana, com aquele sorriso pretensamente pudico, que serve para fingir terceiras intensões, Temer narrou um episódio de pura chantagem política como se fosse algo banal, normal, algo comum das democracias. Temer não mediu as palavras para dizer que a culpa do impeachment de Dilma foi do próprio PT já que o partido não aceitou se submeter à chantagem de Eduardo Cunha (hoje condenado a mais de 15 anos de prisão por corrupção, evasão de divisas e lavagem de dinheiro). Ou seja, se o PT tivesse votado a favor de Cunha no Conselho de Ética, hoje Dilma ainda seria a presidente.


Num raro ataque de cinismo, com pitadas de ironia e escárnio, Temer comentou: "Que coisa curiosa! se o PT tivesse votado nele naquele comitê de ética, seria muito provável que a senhora presidente continuasse". Temer tripudiou sobre seus adversários, fez questão de destacar a ironia da situação. Ou seja, ele mesmo se encarregou de desmentir a história de que Dilma sofreu o impeachment por causa das pedaladas.





quarta-feira, 12 de abril de 2017


Reproduzo aqui uma "Carta Aberta" do Deputado Federal, pelo PSOL/RJ, Jean Wyllys endereçada ao ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Sugiro que o caro leitor se atenha bem mais ao conteúdo da carta do que as motivações que levaram o deputado a escrevê-la, pois ele trata da real divisão politica, econômica, cultural, religiosa, ideológica que existente no Brasil.

CARTA ABERTA A FHC (PORQUE NÃO POSSO ME CALAR)
Caro Fernando Henrique,


Assisti hoje com surpresa ao vídeo que o senhor gravou recentemente, onde se refere ao "bate-boca entre Jean Wyllys e Bolsonaro" e diz que ele foi consequência da "divisão do Brasil provocada pelo PT". Eu pensei muito se eu deveria responder, porque o senhor teve uma atitude corajosa e generosa comigo recentemente, quando os aliados de Eduardo Cunha tentaram suspender meu mandato e, apesar das diferenças políticas que existem entre nós, o senhor me defendeu publicamente. Eu sou grato por esse gesto, mas não posso me calar diante desse vídeo, até porque meu nome é mencionado nele para sustentar uma análise que eu acho muito injusta.


A retórica da "divisão do Brasil" — muito repetida desde o segundo turno das eleições de 2014 — aparece na América Latina sempre que um governo, mesmo sem questionar as bases do modelo econômico neoliberal, desenvolve políticas mais ou menos intensas de redistribuição da renda e melhora a qualidade de vida dos mais pobres, ou amplia os direitos de diferentes parcelas da população antes excluídas. Quando um governo faz isso, é acusado de "dividir" seu país. Mas a verdade é que nossos países já estavam divididos há séculos!


Sim, o Brasil está dividido. Em primeiro lugar, pela divisão de classes própria do capitalismo, que, em sua versão brasileira, está marcado pela herança escravocrata que nos dividiu — a princípio literalmente e, depois, metaforicamente — em "casa grande e a senzala". Ora, segundo o censo do IBGE de 2010, os 10% mais ricos da população ganharam, naquele ano, 44,5% do total de rendimentos; enquanto os 10% mais pobres receberam menos de 1,1%. Ou seja, quem está na faixa mais pobre precisaria poupar a totalidade de seus recursos durante três anos e três meses para acumular a renda média mensal dos que pertencem à faixa mais rica!


E esses dois "brasis" — o da casa grande e o da senzala — correspondem também a outras divisões igualmente históricas: o país branco e o preto; o do sul-sudeste e o do norte-nordeste; o do asfalto e o da favela; o dos jardins e da periferia; o da empregada doméstica e o da patroa. A geografia de nossas cidades — "cidades partidas", para usar a expressão de Zuenir Ventura em livro nada recente e anterior à chegada do PT ao governo federal — está marcada por uma divisão tão evidente quanto naturalizada. No Rio de Janeiro, por exemplo, essa divisão tem uma expressão horizontal — materializada no túnel Rebouças, que divide a cidade em zonas sul e norte — e outra vertical, em que a favela no morro é uma outra cidade dentro da cidade, com diferentes investimentos e serviços públicos e até leis.


Somos um país profunda e historicamente dividido e ainda vivemos numa "Belíndia", com uma parte pequena da população vivendo como na Bélgica e outra muito maior vivendo como na Índia; mas esta divisão não é uma novidade introduzida pelo PT. Ao contrário, os governos petistas trilharam, apesar de todas as suas deficiências, um lento caminho de "reunificação" que estendeu a cidadania a milhões de pessoas.


O país está dividido também por outras linhas que a direita (por seu conservadorismo) e parte da esquerda (por uma leitura anacrônica do marxismo que secundariza todas as formas de opressão que não sejam a de classe) têm enormes dificuldades de enxergar. Trata-se de uma divisão que não é econômica, mas tem a ver com outras posições de sujeito, como a orientação sexual, a identidade de gênero e a cor da pele, entre outras. E nosso país também está dividido pela ação de aqueles que, ao mesmo tempo que defendem um Estado mínimo no que diz respeito à economia, que permite que as desigualdades de classe se radicalizem, querem também um Estado todo poderoso no que diz respeito aos comportamentos e às crenças, tutelando a cama dos adultos, o útero das mulheres e impondo os dogmas morais de uma religião. Com relação a essa segunda divisão, os governos do PT não ajudaram muito, porque se aliaram com setores fundamentalistas, como a direita também faz.


O Brasil está dividido entre homens e mulheres — estas recebem menores salários; têm menos chances de chegar a posições de poder; sofrem a violência de gênero e têm seus direitos sexuais e reprodutivos negados. Está dividido entre heterossexuais e "dissidentes sexuais" (LGBTs) — estes últimos têm inúmeros direitos civis negados; são alvo de discursos de ódio por parte de políticos e pastores fundamentalistas; sofrem violência e bullying desde crianças e são espancados e mortos a cada dia em crimes motivados por ódio. Está dividido entre cristãos e adeptos de religiões minoritárias (incluindo as de matriz africana) e ateus — os dois últimos grupos sofrem as consequências da crescente eliminação da laicidade do Estado, que pretende impor uma religião oficial e um código moral dogmáticos que resulta da leitura fundamentalista do texto bíblico. Está dividido entre brancos e não-brancos desde a época da escravidão. E por aí vai...


Para reduzir essas desigualdades, precisamos ultrapassar os limites impostos pelos governos aliados à elite econômica e financeira; às corporações comerciais e aos partidos políticos fisiologistas e fundamentalistas religiosos, que asseguram a famigerada "governabilidade", hoje como nos governos anteriores. Por isso, a crítica que nós que nos colocamos à esquerda do PT fizemos a esses governos foi exatamente a oposta ao discurso do seu partido e de boa parte da mídia: a conciliação entre os dois brasis não vai nascer do retrocesso na justiça social, nem da privatização de estatais em favor dos lucros do livre mercado (em especial, do livre mercado financeiro), que assegura privilégios a uma casta; a conciliação entre os dois brasis vai nascer justamente da combinação de desenvolvimento econômico sustentável com a extensão da cidadania que fez nascer — e tanto irrita — o antipetismo.


Precisamos unir o Brasil, sim. Mas essa união só será possível quando acabarmos com as fronteiras que produzem exclusão e privilégio. Se de algo o PT é culpado não é de ter dividido o país, mas de ter feito muito menos do que muitos de nós esperávamos para uni-lo. E o governo Temer está destruindo o muito ou pouco que foi feito!


Por último, apenas um esclarecimento. Não houve bate-boca nenhum no dia da votação do impeachment. Houve um deputado que homenageou um torturador que enfiava ratos na vagina das mulheres, e esse mesmo deputado, quando eu fui proferir meu voto, começou a me insultar, a me chamar de veado, queima rosca e outras expressões chulas e ofensivas. Não é a primeira vez que ele insulta, agride e ameaça colegas e jornalistas. E dessa vez, pela primeira vez, eu reagi, no calor do momento, depois de ter sofrido seis anos de assédio moral, insultos, calúnias e ameaças. O senhor não pode me julgar por uma violência que não sofreu.


Atenciosamente,
Jean Wyllys