segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O dia em que o golpe virou carnaval





Em “Brasil: os frutos da Guerra” (Ed. Intrínseca, 2015), o brasilianista Neill Lochery mostra o espanto da embaixada norte-americana, no Rio de Janeiro de 1938, com os brasileiros que “paravam com suas obrigações para a festa de carnaval”. Lochery diz que na 2ª Guerra Mundial o Rio de Janeiro se tornou, como várias cidades mundo afora, alvo da Alemanha nazista. O governo americano pediu as autoridades locais que, à noite, o então Distrito Federal ficasse no escuro para que submarinos alemães perdessem a referência em possíveis ataques. Não deu certo! Os cariocas não aceitaram brincar o carnaval de 1943 no breu e deram de ombros para os americanos que não compreenderam como vidas podiam ser menos importante do que uma festa.


Arnaldo Jabor disse não entender um povo que com tantos problemas se dá ao luxo de passar vários dias curtindo carnaval. O intelectual-mor da República do Tucanobanaquistão não está autorizado a entender um povo que deixa de comer, mas não deixa de “brincar carnaval”. Quando lidamos com coisas tão sérias, como o carnaval, só mesmo um Gilberto Freyre para explicar.


Disse “coisa série como carnaval”? É que o carnaval é uma espécie de licença poética de um povo oprimido, escravizado, por uma elite autoritária distante desse povo que se formou, também, pelas influências dos que aqui foram escravizados. Historicamente o carnaval nos serve para protestar, criticar, reivindicar, além de desdenhar, desfrutar, burlar, satirizar, de tudo e de todos. Paradoxalmente, levamos o carnaval a sério, pois ele nos permite tudo que no dia a dia seria impensável fazer, como assumir outra identidade usando uma fantasia. Dedicamo-nos tanto a essa festa porque estamos tratando de nossa cultura, sociedade, economia e politica. Quer coisa mais séria?


Foi isso que vi no desfile da Escola de Samba “Paraíso do Tuiuti” que fez de sua apresentação uma aula de história e de politica ao relacionar o cancro da escravidão com coisas que acontecem hoje. Ao tempo em que mostrava a escravidão defendeu que ela não acabou, apenas mudou de forma. Com o titulo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” a Tuiuti disse que ela não acabou no Brasil após 130 anos da Lei Aurea. Aqui, não trato de critérios técnicos ou estéticos – esse não é meu metiê. Mas, como historiador, afirmo que relacionar a chegada dos navios negreiros ao Brasil com o "cativeiro social" de nossos dias foi sensacional, diria emocionante. Partindo da escravidão, a Tuiuti tratou da desigualdade social, precarização do trabalho, desemprego, falta de direitos e excesso de deveres a que nosso povo foi, e é, submetido.


A comissão de frente da Escola, com escravos acorrentados sendo açoitados por um feitor, fez lembrar carnavais em que Joãozinho Trinta nos golpeava com maciças doses de realidade. A luta de classes e as disparidades sociais foram magistralmente representadas num carro alegórico onde, no andar de cima, banqueiros e aristocratas se divertiam enquanto eram sustentados, do andar de baixo, pelo povo trabalhador. A Escola mostrou o que queria mostrar sem fantasiar a realidade. Como eu disse, carnaval é coisa séria!


Se é verdade que no Brasil tudo acaba em samba, a Paraíso do Tuiuti transformou o golpe de 2016 em um carnaval inesquecível. As imagens explicam o que minhas palavras pouco ou nada dizem. Esqueçamos tudo o que já foi dito, escrito e desenhado sobre Michel Temer, pois a partir do domingo do carnaval de 2018 o texto e a imagem do usurpador-mor é a de um vampiro envolto numa faixa presidencial. Afinal, o que mais tem feito o ilegítimo senão nos vampirizar com a monstruosa organização criminosa que o cerca?


E o que dizer da ala "Guerreiros da CLT" com seus membros fantasiados de carteiras de trabalho, depauperadas pela reforma trabalhista que o conglomerado golpista tanto preza? Nada, basta olhar. Confesso que a ala dos "manifestoches”, debochando dos que iam às ruas de verde-e-amarelo defender os interesses da elite, me deu uma alegria misturada a um otimismo que a muito não sentia. Aqueles patos amarelos sendo manipulados, como fantoches, por gigantescas mãos cujos donos não apareciam me fizeram delirar e dizer em voz alta: “estou vingado”! O desfile da “Paraíso do Tuiuti” me deu algum alento de que este carnavalesco país ainda tem alguma chance.


A alegoria dos fantoches, que defenderam o impeachment de Dilma Rousseff, foi um tapa na cara da Rede Globo obrigada que foi a mostrar para todo o mundo a ridicularizarão do que tanto promoveu. O desfile da Tuiuti foi um direito de resposta dos que se sentem injustiçados pelos atos do conglomerado golpista e me fez lembrar o direito de resposta de Leonel Brizola em pleno Jornal Nacional em 1994. https://www.youtube.com/watch?v=bTYkusiBnT8



Por fim, mas não menos importante, destaco o desfile da Estação 1ª de Mangueira. Como carnaval combativo foi um dos melhores protestos que já vi. A Mangueira olhou para si, para as outras escolas, para os blocos de rua do Rio de Janeiro e bateu aberta e pesadamente no pastor/prefeito carioca Marcelo Crivella que quis (coitado!) acabar com os desfiles das escolas de samba.


O enredo da Mangueira dizia "Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco". É a mãe de todas as respostas de que, sim, vai haver carnaval no Rio e no Brasil independente do governante de plantão e de suas crenças. A Escola trouxe um boneco enforcado, como um Judas, com os seguintes dizeres: "Prefeito, pecado é não brincar o carnaval", numa alusão aos cortes nas verbas, para os desfiles, promovidos por Crivella. Sendo um fundamentalista de sua religião, Crivella considera o carnaval um pecado, daí o recado da Escola para o prefeito.

Num carro alegórico, um ator fantasiado de "Cristo proibido" lembrava a escultura de Joãozinho Trinta na Beija-Flor em 1989, com a legenda: "Orai por nós, porque o prefeito não sabe o que faz". Sabe sim, sabe muito bem o que e porque faz, pois existe a mão invisível do "manifestoche” da Tuiuti a lhe guiar os passos. O problema é que ele não entende o povo que o elegeu e muito menos entende a seriedade que este povo dá a sua maior expressão cultural.


PS: Abaixo a letra dos sambas enredo da Beija-Flor, Mangueira e Paraíso do Tuiuti. Eles falam de tudo o que não temos (direitos) e de tudo o que nos falta (igualdades de toda sorte).


Monstro É Aquele Que Não Sabe Amar (Os Filhos Abandonados da Pátria Que Os Pariu)
Sou eu
Espelho da lendária criatura
Um monstro
Carente de amor e de ternura
O alvo na mira do desprezo e da segregação
Do pai que renegou a criação
Refém da intolerância dessa gente
Retalhos do meu próprio criador
Julgado pela força da ambição
Sigo carregando a minha cruz
A procura de uma luz, a salvação!
Estenda a mão meu senhor
Pois não entendo tua fé
Se ofereces com amor
Me alimento de axé
Me chamas tanto de irmão
E me abandonas ao léu
Troca um pedaço de pão
Por um pedaço de céu
Ganância veste terno e gravata
Onde a esperança sucumbiu
Vejo a liberdade aprisionada
Teu livro eu não sei ler, Brasil!
Mas o samba faz essa dor dentro do peito ir embora
Feito um arrastão de alegria e emoção o pranto rola
Meu canto é resistência
No ecoar de um tambor
Vêm ver brilhar
Mais um menino que você abandonou
Oh pátria amada, por onde andarás?
Seus filhos já não aguentam mais!
Você que não soube cuidar
Você que negou o amor
Vem aprender na beija-flor

Com Dinheiro Ou Sem Dinheiro, Eu Brinco
Chegou a hora de mudar
Erguer a bandeira do samba
Vem a luz à consciência
Que ilumina a resistência dessa gente bamba
Pergunte aos seus ancestrais
Dos antigos carnavais, nossa raça costumeira
Outrora marginalizado já usei cetim barato
Pra desfilar na Mangueira
A minha escola de vida é um botequim
Com garfo e prato eu faço meu tamborim
Firmo na palma da mão, cantando laiálaiá
Sou mestre-sala na arte de improvisar
Ôôô somos a voz do povo
Embarque nesse cordão
Pra ser feliz de novo
Vem como pode no meio da multidão
Não, não liga não!
Que a minha festa é sem pudor e sem pena
Volta a emoção
Pouco me importam o brilho e a renda
Vem pode chegar
Que a rua é nossa mas é por direito
Vem vadiar por opção, derrubar esse portão, resgatar nosso respeito
O morro desnudo e sem vaidade
Sambando na cara da sociedade
Levanta o tapete e sacode a poeira
Pois ninguém vai calar a estação primeira
Se faltar fantasia alegria há de sobrar
Bate na lata pro povo sambar
Eu sou Mangueira meu senhor, não me leve a mal
Pecado é não brincar o carnaval!

Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?
Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz
Eu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente
Ê Calunga, ê! Ê Calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro nem feitor
Amparo do Rosário ao negro benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor
E assim quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra bondade cruel
Meu Deus! Meu Deus!
Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social
Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação