Publicado no www.brasil247.com.br em 14 de Janeiro - 2021.
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É difícil dizer o que “entra” para a história e o que dela fica “fora”, mas é provável que o 06 de janeiro de 2021 venha a ser tratado como o dia em que a extrema direita supremacista dos EUA, liderada por Donald Trump, tentou dar um golpe de Estado. Meus alunos de História do Brasil e da América poderão, em suas aulas, dizer que um presidente dos EUA tentou permanecer no poder, após perder uma eleição, incitando seus eleitores a invadirem o Congresso. Tenho uma certeza: o 06\01 será visto como o dia em que o modelo de democracia, tido como sólido, rachou. Os chineses gostam de dizer que isso é o começo do fim do império.
Tido
e havido como modelo a ser imitado a democracia estadunidense agoniza, pois os
princípios do federalismo foram trocados pelos interesses do Complexo
Industrial Militar que Fred James Cook tão bem analisa em “O Estado
militarista”. Nessa obra seminal (aqui publicada em 1965 pela Editora
Civilização Brasileira) vemos como se desenvolveu o “Estado total e a
estratégia da guerra total”, após a 2ª Guerra Mundial, quando os EUA
se “dedicaram ao verdadeiro poder - do dólar e das armas”. Cook
cita o Presidente Eisenhower que, em 1961, alertou para a existência nefasta
de “um colosso que domina vastas áreas da vida americana (que) é
a verdadeira ameaça à democracia”. O autor relata como os EUA adotaram, nos
anos 1950, o modelo prussiano militar industrial que produz
ditadores como Hitler e faz da guerra sua própria razão de ser.
Os
EUA provam que não existem democracias imunes às ofensivas da cadela do
fascismo, sempre no cio, como diria Bertolt Brecht. A mãe das ironias é o berço
da democracia moderna, o império da liberdade, “pagando” de república bananeira
com um ditador bufão que arregimenta seguidores para invadir o parlamento. Quem
cravaria que a eleição dos EUA terminaria sob toque de recolher?!
Desesperados com a derrota e com a revolta do povo negro, Trump e sua
malta supremacista lançaram mão da ideia Coringa: "quando tudo
estiver perdido, estabeleça o caos".
A
democracia não é mais hegemônica no ocidente, se é que um dia foi. Nós, que
vivemos bem ao sul da América, vimos congressistas confirmarem a eleição de Joe
Biden ancorados nas armas. Os EUA adotaram o modus operandis aplicado
nas republiquetas caribenhas e latino-americanas onde as armas garantiriam a
“democracia”. Foi trágico, cômico, patético! Confesso que sorri ao ver os
congressistas, lívidos, reafirmando a vitória de Biden sob a ameaça das bombas
de uma extrema direita chucra que se fantasia de bisão para defender seus
interesses.
Estadunidenses sentiram na pele o que é ver seu sistema político derretendo pelo fogo do autoritarismo. Os Vargas, Peróns, Arbenzs, Jangos, Allendes, Dilmas, experimentam o agridoce sabor da vingança vendo o “stupid white man” tocando fogo em suas instituições democráticas. Enquanto via a escumalha supremacista arruinar seu capital democrático disse ao meu sofá: “bem feito, pois eles invadem nossas instituições para fazer valer seus interesses”.
Vi
jornalistas e analistas dos EUA evitando falar em golpe de estado. Não existe,
no inglês, uma palavra para designar o ato de se tomar, pela força das armas, o
poder conquistado pelo voto – é que os EUA nunca tiveram um golpe de estado.
Por isso, tomam emprestado do francês o “coup d’état” (sem
acento, claro). Países que já viveram a experiência da usurpação autoritária do
poder possuem expressões para isso. Na Alemanha e em países do leste europeu,
por exemplo, golpe de estado é “putsch”. Como no Brasil a
democracia é apenas uma fina camada sobre um espesso extrato de autoritarismo,
não precisamos pedir emprestado aos franceses o “coup d’état”.
Devia-se criar um termo, nos EUA, para o que pode vir a ser regra, já que os supremacistas não parecem dispostos a uma conversão democrática. Talvez possam usar o termo alemão numa referência ao “Putsch da Cervejaria” – a tentativa farsesca de golpe de estado do Partido Nazista em 1923. A ideia de assaltar o poder fracassou, mas foi a partir disso que o nazismo se fez conhecer até Hitler subir ao poder em 1933. O que Trump e seus bisões amestrados fizeram não difere tanto do putsch nazista. Na verdade, o fascismo precisa dessas ações teatralizadas para vir a público atestar suas reais intenções e arrecadar a simpatia popular. A invasão do Capitólio pode ser o primeiro de uma série de atos nos quatros anos do governo Biden.
Temos
o efeito bumerangue das democracias burguesas, onde a liberdade pouco
importa, a igualdade é um estorvo e a fraternidade uma
farsa. Em eleições, os donos do capital se valem dos Trumps e Bolsonaros onde
os votos dão a impressão de legitimidade política e social, porém o retorno é a
fascistização das sociedades. Assim como Hitler, desmerecem o procedimento que
os levou ao poder, pois não creem na democracia. Desde que se convenceram de
que perderiam as eleições, Trump e sua trupe lançaram dúvidas sobre a
legalidade das eleições, pois precisavam de uma muleta que ancorasse a
derradeira tentativa de ficar no poder.
A
ideia é que se as eleições foram fraudadas, o povo tem o direito de reagir.
Para Bolsonaro isso tudo é um laboratório – ele já sabe o que fazer caso perca
as eleições em 2022. Pouco importa que Trump seja cancelado nas redes sociais
pelas big techs. Importa que o fascismo viceja, pois ele teve
mais de 70 milhões de votos, na eleição de novembro, e Bolsonaro teve quase 50
milhões em 2018. Hitler revive nesses homens apoiados por milhões. Isso é o que
importa!
...
ou quem com golpe fere com golpe será ferido
Em 2016 o conglomerado golpista depôs Dilma Rousseff contando com a colaboração do Departamento de Estado, do FBI e da CIA estadunidenses. Os golpes civil-militar de 1964 e parlamentar\jurídico\midiático\militar\religioso de 2016 foram apoiados pelos EUA, mas os brasileiros golpistas agora defendem a democracia. Os EUA racionalizam os golpes que deram na América Latina como a “defesa da liberdade e da democracia”, mas a invasão do Congresso foi um ato de “terroristas domésticos”, como disse Joe Biden. Não vi ninguém dizer que os EUA estão tendo o que merecem depois de tantos golpes de estados que já promoveram mundo afora. Pelo contrário, tomou-se para si as dores da democracia estadunidense.
Vi
jornalistas e analistas políticos brasileiros admirados com a marcha lúgubre
dos supremacistas em direção ao Capitólio. Qual a surpresa? O fascismo só se
utiliza dos procedimentos democráticos para ocupar o poder. Feito isso, age
para desmontar o Estado de direito acabando com as garantias da lei e da ordem
política e social. Bolsonaro só esteve próximo do procedimento democrático
eleitoral para se tornar presidente. Feito isso, atuou e atua para desmontar os
vestígios de democracia que ainda temos. Se amanhã ele marchar, junto com seus
seguidores bovinos, para fechar o STF e/ou Congresso Nacional, quem há de se
surpreender?
Em “Como as democracias morrem”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt mostram como as democracias tradicionais vão se enfraquecendo, de modo legal ou não, até perecerem. Eles nos fazem pensar porquê as democracias sólidas se fragilizam ao ponto de deixarem-se dominar pelo fascismo e tratam da “crise do sistema político norte-americano – sobretudo a partir das ameaças trazidas pela ascensão de Donald Trump”. Outra questão é por que países renunciam a seus sistemas democráticos para viverem sobre o tacão das ditaduras. Por que brasileiros e estadunidenses aceitam ser (des)governados por homens como Bolsonaro e Trump? Essa é a questão para pensarmos, pois o “retrocesso democrático, hoje, começa nas urnas”.