“Liberdade somente para os partidários do governo, ou para os membros de um partido, por numerosos que sejam, não é liberdade. Liberdade, é sempre a de quem pensa de modo diferente". Rosa Luxemburgo.
A cerca de dez anos venho, através de exemplos recolhidos em nossa realidade política, tratando de uma discussão recorrente – a relação entre liberdade política e igualdade social, sempre preocupado em demonstrar que a primeira não vive sem a segunda, sendo a recíproca absolutamente verdadeira. Em um determinado momento (quando escrevia minha dissertação de mestrado) revi como essa discussão foi historicamente tratada pela ótica do movimento comunista entre o final do século XIX e o início do século XX. É do que trata este artigo.
Afirmei, por exemplo, que não adianta lutar contra a dominação imperialista acabando com o oxigênio político de uma sociedade: a participação. Este foi o caminho que os bolcheviques tomaram e bem conhecemos o resultado: a instalação da ditadura de um partido e depois de um homem só. Essa discussão é relevante, pois vendo Hugo Chávez destruindo o que ainda resta de democrático em seu país penso ser interessante recorrer à História em busca de alguma luz.
Leon Trotsky, membro do Comitê Central do Partido Bolchevique e criador do Exército Vermelho Russo, defendia uma linha revolucionária antidemocrática e afirmava que a revolução socialista é totalmente incompatível com os mecanismos (voto e parlamento, por exemplo) das instituições democráticas. Por isso, logo após a Revolução de Outubro de 1917, ele exige a adoção de medidas como a extinção da Assembléia Constitucional Russa, por considerá-la um "um pesado mecanismo das instituições democráticas, impregnadas pelo poder burguês”. Já para Lênin, ancorado em Karl Marx, o poder político é tão somente um reflexo do econômico. Em uma sociedade com uma classe explorada e outra exploradora, onde esta se apropria do excedente da produção e passa a controlar os seus meios, não basta ter apenas o poder político, é preciso controlar o capital, e isto só pode acontecer através de um processo revolucionário. Dizia Marx que só quando o poder político da burguesia fosse aniquilado, em prol dos interesses do proletariado, é que a verdadeira democracia (SIC) existiria.
A frente do processo revolucionário russo, Lênin radicalizou apresentando uma raivosa avaliação que pode ser sintetizada nas teses da chamada violência revolucionária. É possível, então, ver - em "A defesa da pátria socialista" (uma coletânea de textos, discursos e artigos produzidos entre 1917 e 1920) - uma defesa intransigente da ação revolucionária violenta para a implantação do socialismo. Afirmava Lênin: “... o parlamento é o sócio da classe governante que reprime e esmaga as pessoas, essa é a real essência do parlamento burguês e, portanto, ele tem que ser destruído". Lênin asseverava ser justa a guerra, desde que fosse para evitar que a burguesia destruísse a pátria socialista que nascia. Todos os pesados custos de uma guerra (morte, destruição, fome, miséria, etc) se justificariam pela nobreza do objetivo de se construir uma sociedade igualitária. Os discursos de Lênin são permeados pelo enaltecimento aos feitos dos "heróis da revolução russa" contra os crimes praticados pelos "facínoras a serviço da burguesia".
Toda atitude (até as mais violentas) era não só justificada como elogiada, pois se tratava, na verdade, de construir o "reino da igualdade e da justiça na terra”. E mais tarde, com Stálin, o assassinato de mais de 4 milhões de russos foi, também, legitimado pela tal justeza de um processo revolucionário. Para os comunistas, portanto, não restava outra saída a não ser destruir as formas de dominação burguesa. O que Lênin negava-se a atentar é que muitas dessas supostas formas de controle burguês, como o sufrágio universal, a legislação do bem-estar nas fábricas, a participação no parlamento, etc, foram conquistas resultantes das lutas dos operários europeus do século XIX. Ao reduzir essas conquistas a uma simples estratégia capitalista para perpetuar o poder burguês, Lênin lançava as bases para que, na ditadura stalinista, os princípios do contraditório e da liberdade fossem aniquilados.
Ao acabar com o que a URSS ainda possuía de democrático (eleições livres para o Conselho de Sovietes, direções de fábrica e cooperativas), Stálin consolidou um modelo em que o todo poderoso Partido Comunista substituía as formas de organização e participação populares e até mesmo a participação formal. O partido passava a ser uma espécie de "super-polvo" que lançaria seus tentáculos totalitários sobre toda a sociedade, o território e, claro, o Estado. Ao anular a participação popular, anulava-se, também, a necessária oxigenação para o desenvolvimento político de uma sociedade. A lógica presente na teoria marxista (se o Estado é proletário, nenhuma forma de democracia liberal) foi aplicada em um modelo de sociedade que, não por acaso, influenciou (ainda influencia?) movimentos por todo o mundo, inclusive na América Latina.
Entretanto, talvez por serem fiéis ao princípio da dialética (tão marcante na filosofia pós-Hegel), alguns marxistas vão discordar dessas questões. Rosa Luxemburgo, musa do movimento comunista alemão entre os séculos XIX e XX, vai ser uma das mais proeminentes intelectuais a discordar dos russos. Apesar de ser uma defensora do movimento de Outubro, Rosa era, também, a favor da liberdade de opinião e da participação política popular. Para ela, em "A Revolução Russa" escrito em 1918, foi um erro tentar unir características da democracia aos elementos coercitivos de dominação proletária, como tentaram fazer os bolcheviques depois de instalados no poder.
Rosa dirigiu suas críticas a Lênin pelo fato dele ter transformado as transitórias e graves limitações (como a dissolução da Assembléia Constituinte – eleita em 17 de Novembro de 1917) impostas a natimorta democracia popular, logo após a vitória, em princípios permanentes e de ter, inclusive, colocado isto como um fator preponderante de qualquer revolução proletária no mundo. Também, vai voltar suas baterias contra Trotsky, por discordar da sua afirmação de que os mecanismos das instituições democráticas são incompatíveis com uma revolução socialista. E esse é o traço marcante das teses de Luxemburgo - defender que socialismo e democracia podem ser elementos de um mesmo conjunto.
A revolução socialista não pode prescindir de valores da democracia - sem ela não pode haver participação popular, sendo a recíproca dialeticamente verdadeira. Sem o povo o governo proletário virou, primeiro, a ditadura de um partido (e de seu Comitê Central) e depois a de seu hitleriano secretário-geral.
Vejamos mais sobre essa questão nas palavras da própria Rosa Luxemburgo: "É um fato absolutamente incontestável que sem liberdade ilimitada de imprensa, sem completa liberdade de reunião e de associação, é inconcebível a dominação das grandes massas (...) Liberdade somente para os partidários do governo, para os membros de um partido, por numerosos que sejam, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente".
Tornou-se célebre a sua frase, talvez devido aos embates travados com os bolcheviques russos infensos que eram àqueles que viessem à deles discordar: “Ser democrático com quem pensa igual é fácil; difícil é ser democrático com quem pensa diferente”. Enquanto Lênin e Trotsky tratavam a liberdade como um conceito burguês, Luxemburgo contra-argumentava afirmando discordar da democracia formal, mas que isso queria dizer apenas que ela sempre distinguiu “... entre o núcleo duro de desigualdade e servidão recoberto pelo suave invólucro da igualdade e liberdade formais”. Para ela era preciso valorizar a igualdade e a liberdade, de forma que os trabalhadores pudessem se sentir participantes do poder político e conquistar um novo conteúdo social.
Alguns marxistas sempre estiveram atentos ao caráter formal que a igualdade recebe em sistemas políticos inspirados pela democracia liberal e a própria Rosa denunciava que o excesso de liberdade política era o outro lado da moeda da desigualdade social em muitos países europeus. Porém, isso não poderia servir de justificativa para que se anulasse a liberdade. Esse foi o seu grande mérito: demonstrar que opor liberdade e igualdade não passa de um falso dilema que, como já demonstrei anteriormente, ressurgiu agora em alguns países latino-americanos.