quinta-feira, 19 de março de 2009

Ditaduras ditam, não pedem – Parte I.

"Portar máscara durante longo tempo estraga a pele"
Monika Zgustova.


Emílio e Augusto, presidentes quando ditaduras eram comuns na América Latina, conversavam quando aquele perguntou a este se era capaz de torturar, matar e ocultar o corpo de um dissidente político. Adiantou que o faria para calar a oposição e permanecer no poder. Augusto não titubeou e assentiu. Emílio, então, indagou se ele faria o mesmo com 30.000 pessoas. Augusto, indignado, retrucou: “O que você pensa que sou?” Emílio retorquiu: “Já foi definido o que somos meu caro. Vamos nos deter nos métodos e quantidades”.


Certo, o diálogo é surreal. Mas, se há quem discuta se ditaduras são brandas ou duras, ele poderia sim ter sucedido. Com premissas equivocadas, termos diferentes se equipararam. Se tivemos um governo constitucional deposto; se se cassou mandatos e o Parlamento e o Judiciário eram subjugados; se o governo ditava Atos Institucionais e decretos-lei; se partidos foram extintos; se não havia liberdade de imprensa, associação e expressão; se pessoas eram pressas, torturadas e mortas. Então, rogo, não tergiversemos – no Brasil, entre 1964 e 1985, tivemos uma DITADURA.


Até criou-se o neologismo “ditabranda”. Stanislaw Ponte-Preta, se vivo, teria mais uma para seu FEBEAPÁ – Festival de Besteiras que Assola o País. Reflitamos se importa discutir se a ditadura no Brasil foi mais ou menos branda do que a do Chile ou da Argentina. Só se é ditatorial a partir de certo número de mortes provocadas? Pode-se aniquilar opositores e seguir democrático? Importa os prejuízos sentidos até hoje, não se a dita foi branda ou dura.


É factível classificá-la pelas fases em que os militares, divididos entre “linha dura” e “moderados”, revezaram-se no poder. Mas, o comedido Geisel defendia aniquilar opositores para manter, literalmente, a ordem e o progresso. Em “A ditadura derrotada” Elio Gaspari reproduz um diálogo entre Geisel e seu ministro Dale Coutinho que dizia que as coisas só melhoraram quando começaram a matar. E Geisel, que comandou a liberalização do regime e dizia-se contra a tortura, emenda: “Esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que ser”. Seu interlocutor segue o raciocínio: “Eu fui obrigado a tratar esse problema em São Paulo e tive que matar”. (Gaspari: 2003, 324). Esses eram os da “ditabranda”! Imagine-se o que não diriam os da ditadura. Como se vê o dilema é falso! Vamos, então, ao que realmente interessa.


A muito alterco sobre a recorrência do tema ditadura militar, 24 anos após o seu fim. Tratamos o golpe de 64, o regime autoritário e suas conseqüências como se estivéssemos em 1985. Qual o problema? Nosso passivo pretoriano não foi contabilizado ao contrário, por exemplo, da Espanha que impôs um controle civil sobre os militares após a ditadura franquista. Temos uma agenda de trabalho a cumprir: a Lei da Anistia deve ser revista; os que, a serviço do Estado, torturaram e/ou mataram devem ser punidos; e os arquivos do antigo Serviço Nacional de Informação precisam ser definitiva e totalmente postos a disposição de quem quer que seja.


O Ministro Gilmar Mendes, reverberando outras vozes, disse que revisar a Lei da Anistia traz instabilidade ao Estado de Direito. Não seria investigando crimes e punindo culpados que asseguraríamos o Estado de Direito e a democracia? Nossas fragilidades institucionais impedem uma varredura nos atos do regime militar. Comparativamente, democracias eleitorais como a nossa reviram suas ditaduras e em nenhuma delas se viu a derrocada do Estado de Direito.


Na Argentina a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas investigou os crimes da ditadura. Membros das 4 juntas militares, que presidiram o país entre 1976 e 1983, foram julgados e até condenados. A Marinha admitiu que sequestrou, torturou e assassinou cidadãos. Houve até instabilidade institucional, mas não quebra do Estado de Direito.


Desde o governo de Nestor Kirchner, com orientação política próxima a do Presidente Lula, viu-se 800 processos reabertos, 534 pessoas processadas e 378 presas. Agora, dois ex-oficiais do Exército foram condenados a prisão perpétua, acusados pelo seqüestro, tortura e desaparecimento de três pessoas. Note-se que o Executivo e o Judiciário pelejam sobre a forma dos julgamentos, mas isso não impediu o andamento de investigações e processos. Também não houve agitações nos quartéis e muito menos quebra do Estado de Direito.


Nos seus 7 anos a ditadura argentina matou 30.000 pessoas. Nos Brasil, foram 635 mortos em 21 anos. Os militares de lá têm bem mais coisas a esconder, mas isso não dificulta o empenho dos argentinos em resolver seu passivo autoritário. Os julgamentos dos militares portenhos se dão na justiça federal, utilizando-se o código penal. No Brasil, os militares continuam a ter a Justiça Militar como foro, i.e., são julgados pelos seus pares. Como se vê a questão não se restringe a quantidades, e sim a substância que se quer que a democracia tenha.


No Uruguai o parlamento revogou simbolicamente a lei que anistiou militares torturadores. No Chile, a Comissão de Verdade e Reconciliação revolveu a ditadura Pinochet. O Exército e a Marinha admitiram que utilizavam a tortura em presos políticos. O Chile tem hoje uma democracia bem desenvolvida. Em El Salvador a Comissão da Verdade forçou o Exército a se responsabilizar pelo massacre de El Mozote e na Guatemala uma Comissão de Esclarecimento Histórico responsabilizou militares pelo genocídio contra comunidades indígenas. Nem por isso, estes países voltaram ao autoritarismo.


Houve quem se opusesse a estas investigações. Em geral, os que participaram ou se beneficiaram das ditaduras. Tal qual Gilmar Mendes, falaram em ameaças ao Estado de Direito. Na Argentina e no Chile só se propôs reconciliação (não esquecimento) quando os fatos foram admitidos e os culpados começaram a serem punidos. É assim que o Estado de Direito sobrepor-se-á ao “direito” da força. No Brasil, o que se pretende é um projeto de olvidamento nacional.


Após o julgamento de Nuremberg, tentou-se ocultar as atrocidades nazistas. O que fez Hannah Arendt afirmar que "Os alemães vivem da mentira e da estupidez". Foi só quando parou de dissimular suas culpas que a Alemanha conseguiu passar a limpo seu pretérito totalitário. Hoje, ela não é mais responsabilizada pelo que houve em que pese os museus sobre o holocausto existirem para que ninguém esqueça. Como afirmava Walter Benjamin, não se passa borracha na história. Tentativas de fazê-lo resultam em atrocidade intelectual, maculada de falsidade e mentira.

Continua em breve...

Um comentário:

Cecília Olliveira disse...

Quando leio nos jornais manchetes do tipo "General deixa posto no Rio com elogios ao golpe militar de 1964", publicada no dia 12.03.2009 pela Folha de S. Paulo, onde vejo o sr. (ex) general Luiz Cesário da Silveira Filho, dizer barbaridades como "Participei ativamente da revolução democrática (??) de 31 de março de 64, ocupando posição de combate no Vale do Paraíba" (...) "a incontestável liderança do general-de-brigada Emílio Garrastazu Médici, de patriótica atuação posteriormente na Presidência", na presença de autoridades que são responsáveis pela nossa segurança, tenho um pequeno vislumbre do pq estamos imersos nesse banho de sangue cotidiano.

Me alegro em ler os artigos do Gilbergues e me agarro na esperança de que um dia pessoas como o sr ex general rasguem as "fardas democráticas" tatuadas em sua pele e "entendam" o que podemos chamar de 'o outro lado da história'...