Um breve esclarecimento antes da leitura
Escrevi este artigo a quase dois meses atrás. Senti-me provocado com o golpe em Honduras e com a nossa realidade política, onde os entulhos autoritários vindos da ditadura militar continuam por aí para quem quiser (e puder) vê-los. Imaginei a hipótese, não de toda absurda, de termos um revés autoritários no Brasil, mas logo descartei essa possibilidade por aceitar o conceito de zona cinzenta (gray zone, como dizem os americanos) como algo factível para explicar nossa realidade.
Alerta aos caros leitores - não acho que estamos na eminência de termos um golpe de Estado tal qual o de Honduras, mas também não consigo ver uma sólida democracia que resista às investidas autoritários que vem acontecendo insistentemente.
Zona cinzenta democrática
No Brasil temos eleições assíduas e alternância no poder há 24 anos. Não muito diferente de Honduras, onde por 19 anos, procedimentos democráticos foram utilizados, até que um golpe de Estado solapou-os. Esses países têm democracias frágeis por não seguirem a descrição procedural mínima sugerida por Scott Mainwaring. Por ela, democracia tem que ter eleições competitivas, livres e críveis; cidadania vigorosa, liberdades civis e direitos políticos; governo de fato e militares controlados pelos civis.
Em artigo, o cientista político Jorge Zaverucha demonstrou que, para deporem o presidente Manuel Zelaya, os militares ancoraram-se no artigo 272 da Constituição, de forma que as Forças Armadas deveriam “defender a soberania da República, manter a paz e a ordem pública”. Em nossa Constituição, o artigo 142 determina às Forças Armadas papel semelhante, ao afirmá-las como garantidoras dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Aqui, como lá, entulhos autoritários permanecem no ordenamento jurídico, nos impedindo de olvidar de nosso passivo ditatorial.
A justificativa dos golpistas foi barrar o projeto continuísta de Zelaya. Tornou-se hábito, na América Latina, governos reivindicarem a modificação de suas constituições para se reelegeram, até indefinidamente, como quer Hugo Chávez. No Brasil ainda há, nos três poderes, quem queira ver Lula reconduzido ao terceiro mandato.
Considerando que eleição é necessária pra termos democracia, em que pese não garantir sua solidez, podemos assegurar que as possibilidades de um revés autoritário esvaíram-se? Os que, olhando para Honduras, diziam sim, reverão suas análises? Já no Brasil, temos uma condição letárgica, onde nem fortalecemos as instituições, ao ponto delas não serem ameaçadas, e nem retroagimos para uma ditadura. Vivemos em uma zona cinzenta entre o autoritarismo e a democracia.
Medições feitas pelo Latinobarômetro dão conta de que cerca de 40% dos latino-americanos aceita trocar seus governos democráticos por governos fortes que promovam desenvolvimento econômico e combatam a corrupção. Isto corrobora com a idéia de que a democracia precisa de elementos substanciais para se sustentar, além dos procedurais. Por aí se entende por que parte da população hondurenha apoiou o golpe patrocinado pelo poderes Judiciário e Legislativo
Vejamos lições recentes. Em 1992, Alberto Fujimori apoiou-se nas Forças Armadas peruanas para, explorando a corrupção e a guerrilha, dar um golpe de Estado. Antes, quis saber se a população concordava com o fechamento, devido à corrupção, do Congresso e do Judiciário. 71% dos entrevistados aprovaram a dissolução do legislativo e 89% concordaram com a intervenção no judiciário. Quando a comunidade internacional condenou o golpe, o “Chino” proclamou que “o povo está comigo!”.
No mês de abril, o senador Cristovam Buarque lançou estapafúrdia ideia de um plebiscito que inquirisse a população sobre o fechamento do Congresso brasileiro, devido incontáveis escândalos, a disfunção causada pelas medidas provisórias do poder Executivo e as tentativas do Judiciário de fazer a reforma política que o parlamento insiste em não realizar.
O senador nada disse sobre como e quem fecharia o Congresso, caso a população brasileira, tal qual a peruana, assim o quisesse. Na noção clássica latino-americana de golpe de Estado é o Exército, a pedido da sociedade civil, quem enquadra o parlamento.
Dalmo Dallari defendeu o fim do sistema bicameral, i.e., que o Senado seja fechado, partindo das premissas de que ele foi historicamente usado para a promoção dos interesses da elite, que muitos senadores corruptos não são punidos e continuam sendo reeleitos e que os acordos políticos só se justificam pela formação da maioria. Dallari não fez referência ao fato de que o fechamento do Senado debilitaria mais ainda o sistema representativo. Sem contar que se o Senado não nos fará falta, provavelmente a Câmara também não. Isso abriria temerários precedentes.
No golpe civil/militar de 1964, parlamentares foram cassados sob acusação de corruptos. Golpes são racionalizados pela necessidade de se aplicar remédios amargos em doentes graves. Discursos fáceis, tentativas de se perpetuar no poder e asfixia do Congresso acabarão com o pouco oxigênio que nossa democracia ainda respira.
Governo e parlamento só são legítimos, se consentidos pela população. Esta anuência se materializado pelo voto, não pela força das armas. Schumpeter se referia à democracia como um método institucional que escolhe os que vão decidir e que tem a capacidade de substituir governos de modo que os escolhidos não se tornem força inamovível. Devemos nos contentar com isso? Não, é insuficiente. Mas, se não consolidarmos nem isso, como avançaremos para um sistema que contemple amplos aspectos do funcionamento de um Estado que seja a um só tempo legal e legítimo, portanto, de direito e democrático?
Desde a proclamação da República, ainda não tivemos mais de 35 anos contínuos de democracia, sem que autoritarismos de toda sorte solapassem as instituições. Do fim do regime militar, em 1985, até aqui, somamos menos anos do que os vividos sob as duas ditaduras do século XX. Nossa frágil democracia eleitoral tem muito que evoluir.
Setembro/2009.
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