Em resposta ao Estadão, neta de Marc Bloch
diz que avô jamais apoiaria um golpe. Suzette Bloch lembrou que seu avô foi um
defensor da liberdade fuzilado pelos nazistas e condenou o jornal por usar o
historiador para defender posições ideológicas diametralmente opostas às dele.
http://brasileiros.com.br/
http://brasileiros.com.br/2016/07/neta-historiador-marc-bloch-responde-editorial-estadao/
Suzette Bloch, neta do historiador Marc Bloch (1886-1944), fundador dos Annales d’Histoire Économique et Sociale (Anais de História Econômica e Social), rebateu
as críticas que o jornal O Estado
de S. Paulo fez aos intelectuais que assinaram o
manifesto Historiadores pela Democracia. No editorial “O lugar de Dilma na
história”, o jornal atacou os pensadores que condenaram o golpe de Estado
que afastou Dilma Rousseff da Presidência, no mês de maio.
Na carta aberta, a
jornalista Suzette Bloch, “neta e detentora dos direitos autorais do
historiador e resistente Marc Bloch”, declara-se espantada com o editorial do
Estadão: “Eu li seu editorial do dia 14 de junho sobre o manifesto dos
Historiadores pela Democracia. Ele me deixou estupefata e indignada. Seu jornal
utiliza o nome de meu avô para justificar um engajamento ideológico totalmente
oposto ao que ele foi, um erudito que revolucionou a ciência histórica e um
cidadão a tal ponto engajado na defesa das liberdades e da democracia que
perdeu a vida, fuzilado pelos nazistas em 16 de junho de 1944″. Ela prossegue:
“O jornal recorre ao nome de Marc Bloch para responder aos historiadores
brasileiros que se posicionaram contra o afastamento da presidenta Dilma
Rousseff. ‘Pensamento único, historiadores muito bem posicionados na academia,
a serviço de partidos, bajuladores do poder etc.'; seu editorial não argumenta,
apenas denigre. Eis porque tiveram necessidade de se valer de uma obra de
alcance universal e da vida irretocável do meu avô para tonar virtuoso seu
apoio ao golpe de Estado”.
Na sequência, ela recorda ao jornal que
os descendentes de Marc Bloch condenaram o golpe de 1964, no Brasil, que O
Estado de São Paulo apoiou: “”Condeno toda instrumentalização política de Marc
Bloch. Para além do homem público, ele é o avô que eu não conheci, mas que nos
deixou como herança a memória de uma família para a qual a liberdade representa
a essência de toda humanidade. Em todo lugar, a cada instante, no Brasil
inclusive. Vocês omitiram aos seus leitores o fato de que o filho mais velho de
Marc Bloch, meu tio Étienne, que libertou Paris junto com a 2ª Divisão Blindada
do General Leclerc, foi o presidente do comitê de solidariedade França-Brasil
nos anos 1970. Este comitê auxiliou as vítimas do regime civil-militar iniciado
com o golpe de 1964 e manteve-se na luta pelo retorno da democracia brasileira.
Poderiam ainda ter explicado aos seus leitores que a neta de Marc Bloch se
casou com um brasileiro, Hamilton Lopes dos Santos, refugiado político do
Brasil e depois do Chile, tendo chegado na França em 1973 em razão do golpe de
Pinochet. Poderiam, enfim, ter anunciado que dois dos bisnetos de Marc Bloch,
Iara e Marc-Louis, são franco-brasileiros”.
E prossegue: “Conseguem imaginar a
reação de meu avô diante do espetáculo dos deputados que votaram pelo
afastamento de Dilma Rousseff em nome de suas esposas, de seus filhos, de Deus
ou de um torturador? Imaginem ainda sua reação diante de um presidente interino
que formou um governo exclusivamente de homens e cuja primeira medida foi
suprimir o Ministério da Cultura e o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial,
Juventude e Direitos Humanos, suspendendo e reduzindo diversos programas
sociais, como o Minha Casa Minha Vida. Ministros empossados são investigados
por corrupção e alguns foram exonerados após a divulgação de conversas nas
quais admitiam que o afastamento de Dilma não tinha senão um objetivo: parar as
investigações contra a corrupção. Imaginem a reação de meu avô!”
Suzette contrapõe então a conjuntura
política no Brasil com a da França: “O presidente francês, François
Hollande, foi eleito com 51,9% dos votos em 2012 e sua popularidade não passava
de 16% em maio. No entanto, seus adversários políticos sequer sonharam em
contestar sua legitimidade conquistada nas urnas, apenas estão se preparando
para as próximas eleições, como em toda democracia digna deste nome. Não pode
haver democracia sem o respeito às eleições. Contudo, um grande jornal como
este aplaude o confisco do voto popular”.
No final, ela cedeu espaço ao
“historiador Fernando Nicolazzi, integrante do grupo de Historiadores pela Democracia”,
ao qual solicitou uma resposta para o jornal. Segue-se o texto deNicolazzi:
“O convite feito por Suzette Bloch para juntar minhas palavras às suas,
no ato solidário e indispensável de combater a impostura de um jornal
comprometido, em cada linha de seus editoriais, com a defesa de um golpe de
Estado em curso, não poderia ser recusado. Este mesmo jornal, que há alguns
meses disse um ‘basta!’ à democracia, ecoando o gesto autoritário cometido pelo
Correio da Manhã em 1964, agora direciona seus impropérios ao grupo de
historiadores e historiadoras que atuam em defesa dos princípios democráticos
de nossa sociedade. Faço parte deste grupo e estive na audiência realizada com
a presidenta eleita Dilma Rousseff no último dia 7 de junho.
O editorial de 14 de junho, que pretende definir o ‘lugar de Dilma na
história’, faz menção a palavras escritas por Marc Bloch, desvinculando-as
irresponsavelmente daquele que as escreveu. Nesse sentido, instrumentaliza
politicamente o nome do historiador francês, autor de uma apologia da história
elaborada no momento mesmo em que atuava na resistência contra o fascismo e em
defesa das liberdades democráticas. Suzette Bloch, em justificável indignação,
já apontou acima o desrespeito ético e a desonestidade intelectual que
caracterizam este texto. Quanto a isso não cabem aqui outras palavras.
Porém, é preciso fazer frente também à outra dimensão contida naquele
editorial: sua falaciosa representação dos historiadores e historiadoras que
assinaram o manifesto, definidos ali como intelectuais ‘a serviço de partidos
políticos’, comprometidos com a elaboração de um ‘pensamento único’,
‘bajuladores do poder’. O editorial traz ainda as marcas da sua baixeza moral
ao sugerir, sem qualquer respaldo aceitável, que muitos dos participantes do
encontro com a presidenta a ‘detestam’. Nada mais desonesto, nada mais
mentiroso! Mas também nada mais compreensível!
Afinal, não é difícil compreender que, para setores da sociedade
comprometidos com a manutenção da exclusão em suas diferentes formas, a defesa
da democracia e da inclusão social cause incômodo e provoque atitudes como esta
que, faltando com a verdade, apenas encontra amparo na ofensa e na
intolerância. Além disso, é fácil compreender que essa seja a única forma de
linguagem política assumida pelo jornal, que já definiu os opositores ao golpe
de ‘matilha de petistas e agregados': a propagação do seu ódio na busca de
cumplicidade, como se ele fosse compartilhado por todas as pessoas. Basta
acompanhar as inúmeras e diversas intervenções dos Historiadores pela
democracia para constatar quão caluniador e distante dos fatos é o editorial.
O golpe parlamentar, jurídico e midiático em curso ataca direitos
sociais, políticos e civis que são fundamentais para a existência da
democracia. Tais direito foram conquistas feitas pela sociedade e não simples concessões
governamentais. Lutar contra este golpe não significa defender um governo ou um
partido político, mas sim defender a vigência de princípios básicos de
cidadania, considerando que a justiça social deve ser um valor preponderante em
nossa sociedade. Foram estas razões que me fazem participar do grupo, além da
convicção íntima, enquanto historiador e enquanto cidadão, de que posicionar-se
pela democracia se coloca hoje como um imperativo incontornável na nossa vida
pública.
Em um texto que pretende dizer o que deve ser o exercício da
historiografia, lemos apenas o uso inconsequente da história e a utilização
deturpada da obra de um historiador que soube como poucos escrever sobre o
próprio métier. Apesar da indignação causada, o editorial cumpriu seu papel
esperado, sem nenhuma surpresa. E ao menos algo positivo ficará dessa situação:
não será preciso aguardar historiadores futuros para colocar o Estadão em seu
devido lugar na história, ou seja, ao lado dos golpistas do passado, os mesmos
que em 2 de abril de 1964 comemoraram a vitória do “movimento democrático” que
hoje conhecemos como ditadura civil-militar e que, além de vitimar milhares de
pessoas, ampliou a desigualdade social no Brasil. Seus editorialistas continuam
realizando com esmero essa função no presente”.
O texto foi enviado ao portal do
Estadão, mas não houve resposta por parte dos editores. A carta foi publicada
pelo blog “Hum Historiador”, de José
Rogério Beier, mestre em História pela USP.