Quer apreender lições de como se perpetuar no poder? Leia Maquiavel, que estudou este ancestral meio de pautar a relação entre os homens e os Estados. Em O Príncipe ele trata de como se conquista, se mantém e se perde o poder. Quer aulas práticas? Que tal Stálin e Franco; ou Getúlio Vargas, Fidel Castro e demais ditadores latino-americanos? Temos Hugo Chávez e Vladimir Putin que querem se eternizar no poder. Nas democracias os partidos políticos agem com rigor neste sentido. No Brasil temos o exemplo do PMDB.
Sua acachapante vitória no Congresso Nacional, ganhando as presidências da Câmara dos Deputados, com Michel Temer, e do Senado, com José Sarney, demonstra longevidade no poder e capacidade de sobrevivência. O PMDB atuou na liberalização que legou nossa frágil democracia, teve as derrotas de 1989 e 1994 e, após 16 anos, volta a comandar as duas casas do Congresso, gabaritando-se para influenciar o jogo da sucessão presidencial em 2010.
O controle do Congresso é mais um elemento no manancial de poder do PMDB. São 7 ministérios, 7 governos estaduais, 5 prefeituras de capitais e 1.308 de cidades; além de 20 cadeiras no Senado, 96 na Câmara, 170 nas Assembléias Legislativas e 8.308 nas Câmaras de vereadores. Convenhamos, é muito poder! Mas, como ensina Maquiavel, não basta tê-lo, é preciso mantê-lo.
O PMDB é governista por definição. Esteve em todos os governos pós-ditadura. Eis a fórmula: aliar-se a quem está no poder central. Fácil? Não, bastante difícil. Alianças são feitas a partir do que se tem para oferecer. O PMDB sabe que todo presidente da República conta com o apoio dos presidentes da Câmara e do Senado - foi por isso que se bateu pelas vitórias de Temer e Sarney. Atropelou aliados e adversários, contou com o pragmático apoio de Lula e ofertou cargos, verbas e outros mimos no varejo e a granel. Mas, qual o valor desses cargos num cenário eleitoral?
Os presidentes do Senado e da Câmara controlam a pauta de votação de suas casas - decidem o que vai ou não ao plenário, i.e., o governo depende deles para aprovar projetos. Podem retomar antigas matérias, definir o que será questão de ordem, arquivar (ou apressar) a instalação de CPIs e, unilateralmente, impugnar as proposições dos parlamentares.
O presidente do Senado dirige as sessões conjuntas das duas casas e põem em votação medidas provisórias e vetos presidenciais. Convoca o Congresso em casos de decretação de estado de defesa, de intervenção federal e de estado de sítio. Já o presidente da Câmara é o segundo na linha sucessória e o do Senado o terceiro. Com os problemas de saúde do vice-presidente José Alencar e com Lula viajando, Michel Temer assumirá algumas vezes. Imagine-se o que não fará em prol do PMDB sentando na cadeira presidencial por, digamos, três dias?
Vejamos, então, como fica o cenário para a próxima eleição. O PMDB valoriza bem seus espaços. Engana-se quem acha que retribuirá facilmente o apoio dado pelo governo na eleição do Congresso. Imporá árduas negociações em cada matéria de interesse do governo, como as medidas que visam minimizar os efeitos da crise econômica, posto que se a marolinha lulista virar tsunami, o PAC não anda e a candidatura Dilma vai para as calendas.
Resolutamente governista, o PMDB tende a ficar com Lula, para eleger Dilma, ou outro nome caso o dela não decole. É sabido que Lula quer o PMDB na vice-presidência e que o preferido é o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. Mas, na real política, muda-se de preferência ao sabor das conjunturas. Assim, Michel Temer passa a ser bem visto, apesar de que terá que ser dócil aos interesses do governo na Câmara. Ele prefere ser o Dilmo de Dilma, i.e., quer a Casa Civil se Dilma for eleita presidente. Bem ao estilo do PMDB, prefere os bastidores ao proscênio. Já Sarney “contenta-se” em comandar os quereres dentro e fora do Congresso. Dilmista, age para ter Aécio Neves no bloco dos que apóiam Lula, sem que saia do PSDB. Com isto garante bom trânsito na oposição, caso a crise econômica faça água na popularidade de Lula e na candidatura de Dilma.
Ao tomarem posse, Sarney e Temer, prometeram que vão encaminhar a reforma política. Sabemos que não, pois ela visa redesenhar as instituições para dotá-las de um caráter mais republicano – tudo o que a elite político-partidária não quer. Prometeram mais transparência e aproximar o Congresso dos eleitores. Bazófias, de quem tem poder acima de seus pares.
A única certeza é que o PMDB comporá o governo que assumirá em 2011. Se mantiver a aliança com Lula e Dilma for eleita, tanto melhor. Se o PSDB conseguir eleger Serra? Problema nenhum. Com seu cabedal político pula para o galho tucano. É um erro dizer que o PMDB está com os pés neste ou naquele galho. Ele sempre está com os pés em vários galhos, desde que seguros.
Postscriptum: Tratei do PMDB pela notável vitória obtida no Congresso. Mas, ele não é a exceção, e sim uma privilegiada regra. Guardando as devidas proporções, vários outros partidos podem servir como exemplo em aulas práticas de como se perpetuar no poder.
Fevereiro/2009.
Professor do Curso de História da Univ. Estadual da Paraíba desde 1993. Mestre em Ciência Política-UFPE e Doutorando em Ciência da Informação-UFPB. Especialista em História do Brasil, com ênfase na Era Vargas e na Ditadura Militar, na democracia e no autoritarismo. Autor dos livros "Heróis de uma revolução anunciada ou aventureiros de um tempo perdido" (2015) e “Do que ainda posso falar e outros ensaios - Ou quanto de verdade ainda se pode aceitar” (2024), ambos lançados pela Editora da UEPB.
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
Autofagia na política paraibana.
Considerando que atores políticos institucionais se comportam para obter respostas ótimas às condições que lhes são dadas, i.e., são racionais e atuam para maximizar ganhos e minimizar perdas. Assumindo que o imbróglio político paraibano aventa que subsistimos em uma latência eleitoral, onde os resultados das urnas têm que passar pelo crivo judicial, vejamos algumas questões sobre a cassação do governador Cássio Cunha Lima.
Antes, o óbvio – os meios utilizados para captar votos devem ser revistos. Tivéssemos o senador José Maranhão eleito em 2006 e estaríamos, agora, falando de sua cassação. Mostrem um pleito que não se usou a compra de votos e eu direi que políticos são altruístas por definição.
Cassado duas vezes pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) acoimado de distribuir cheques da Fundação de Ação Comunitária (FAC), o governador permaneceu no cargo por força de liminar. Em 20/11 passado, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) manteve a decisão do TRE e cassou a liminar. O governador teria apenas que aguardar a publicação do acórdão para deixar o cargo. Ato contínuo, o senador José Maranhão renunciaria a seu mandato e assumiria o governo. Mas, cabia recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF). Como ministros do TSE têm assento no STF e como, em geral, esta corte não contradiz aquela, dava-se como certa a saída de Cássio Cunha Lima do executivo estadual. Não foi o que ocorreu. O STF o manteve no cargo.
Este processo é um látego para a sociedade e fragiliza as instituições. O que se espera é que se tome - e se cumpra - uma decisão, independente de qual seja e a quem beneficie.
Havia dúvidas quanto à culpabilidade do governador? Então não se deixasse o processo chegar ao STF. Porque os ministros do TSE não pediram vistas ao invés de julgá-lo em rito sumário? Poupar-se-ia a sociedade e as instituições paraibanas de muitos contratempos.
O que aparenta é que os ministros recearam dar ao país o precedente. Cássio Cunha Lima é apenas um entre sete governadores com mandato sub judice. Cassá-lo escancararia a porteira. Suas excelências responderiam pela debandada da manada? Cassar vereadores e deputados é fácil; mas, apear governadores de seus cargos é algo a se ponderar. Senão, vejamos.
Os governadores de Santa Catarina - Luiz Henrique (PMDB), Tocantins - Marcelo Miranda (PMDB) e Sergipe - Marcelo Déda (PT) são acusados de uso indevido da mídia, propaganda antecipada e abuso de poder político e econômico. O governador de Rondônia - Ivo Cassol (PPS), denunciado pela compra de votos, foi, também, cassado duas vezes pelo TRE. No Maranhão, o governador Jackson Lago (PDT) foi acusado de distribuir cestas básicas e o governador de Alagoas, Teotônio Vilela (PSDB), teve seu mandato contestado. Cassar um desses é por a mão em um vespeiro de interesses. E, note-se, que dos sete apenas dois (o paraibano e o alagoano) são de um partido de oposição ao governo federal. Os outros cinco apóiam o presidente da República.
O TSE pretendia não mais desgostar a opinião pública, depois de desautorizar os TRE’s que negavam registro de candidatura a políticos “fichas-sujas”. Parecia querer limpar sua própria ficha. Se a cassação de Cássio alertou os outros governadores, o desdobramento mitigou-os.
Foquemos, agora, a atenção nos dois principais atores do mistifório paraibano.
Aprovado por 69% dos paraibanos, o governador Cássio mantém-se no cargo, mas carrega a marca indelével da cassação. Perde tempo dando explicações e chances de projetação em nível nacional. É tratado (pela mídia) como o “governador cassado” e isso poderá servir para que, no futuro, seja preterido em alianças políticas na esfera federal. Sua opção? Terminar o mandato e buscar uma vaga no senado. Óbvio, espera que o tempo, senhor dos esquecimentos, aja.
Ele tem afirmado que a democracia é ameaçada por processos que modificam o resultado das urnas. Certo, o voto é a expressão da vontade popular. Mas, nosso sistema político baseia-se na separação dos poderes. O poder judiciário deve interferir se o executivo infringe leis. A decisão popular é soberana e legal, mas pode equivocar-se e se ilegitimar, daí a intervenção judicial. Se assim fosse, Collor não sofreria o impeachment, já que foi eleito. E, sabemos como eleitores usam o voto como moeda de troca e não para escolher representantes.
O senador José Maranhão exerce seu mandato em Brasília, enquanto aguarda o fim do processo. Seu partido (PMDB) abocanhou a presidência das duas casas do Congresso e, claro, ele se beneficiará disso. Porém, sabe que é temerário assumir um mandato próximo do fim. Lidará com percalços de uma transição onde a equipe que sai não facilita o trabalho da que entra. E, para montar um staff, terá que selecionar aliados, i.e., agradará a uns e desagradará a outros.
Também, se assumir, verá na Assembléia Legislativa a bancada majoritária indo para a oposição. Além do que, restarão dúvidas se ele terá direito a uma ou duas reconduções ao cargo. O seu dilema é sobre as vantagens de trocar de cargo tão próximo da eleição. O fato de, quando perguntado se vai tomar posse, responder, em geral, com evasivas sugere que sua meta não é a de voltar imediatamente ao governo da Paraíba. Ao se colocar como candidato a governador em 2010, Maranhão mostrou uma visão utilitarista da cassação – a vê como forma de desgastar Cássio.
O pior desta tibornice é o modus operandis. A forma como eles se agridem e os métodos utilizados nas últimas eleições, os embates entre as bancadas de oposição e situação na Assembléia Legislativa e na Câmara de Vereadores de Campina Grande - parlamentares que não representam seus eleitores pela sanha de atacar adversários – demonstram que a luta pela hegemonia no poder foi substituída por um combate de vida e morte.
É por isso tudo que vou me contradizer. Desconsiderarei a racionalidade dos atores políticos, pelo menos os da Paraíba. Eles não percebem que essa autofagia política abrirá espaço para novas (digo novas, não recauchutadas) lideranças que possam depurar o oxigênio da política paraibana.
Fevereiro/2009.
Antes, o óbvio – os meios utilizados para captar votos devem ser revistos. Tivéssemos o senador José Maranhão eleito em 2006 e estaríamos, agora, falando de sua cassação. Mostrem um pleito que não se usou a compra de votos e eu direi que políticos são altruístas por definição.
Cassado duas vezes pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) acoimado de distribuir cheques da Fundação de Ação Comunitária (FAC), o governador permaneceu no cargo por força de liminar. Em 20/11 passado, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) manteve a decisão do TRE e cassou a liminar. O governador teria apenas que aguardar a publicação do acórdão para deixar o cargo. Ato contínuo, o senador José Maranhão renunciaria a seu mandato e assumiria o governo. Mas, cabia recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF). Como ministros do TSE têm assento no STF e como, em geral, esta corte não contradiz aquela, dava-se como certa a saída de Cássio Cunha Lima do executivo estadual. Não foi o que ocorreu. O STF o manteve no cargo.
Este processo é um látego para a sociedade e fragiliza as instituições. O que se espera é que se tome - e se cumpra - uma decisão, independente de qual seja e a quem beneficie.
Havia dúvidas quanto à culpabilidade do governador? Então não se deixasse o processo chegar ao STF. Porque os ministros do TSE não pediram vistas ao invés de julgá-lo em rito sumário? Poupar-se-ia a sociedade e as instituições paraibanas de muitos contratempos.
O que aparenta é que os ministros recearam dar ao país o precedente. Cássio Cunha Lima é apenas um entre sete governadores com mandato sub judice. Cassá-lo escancararia a porteira. Suas excelências responderiam pela debandada da manada? Cassar vereadores e deputados é fácil; mas, apear governadores de seus cargos é algo a se ponderar. Senão, vejamos.
Os governadores de Santa Catarina - Luiz Henrique (PMDB), Tocantins - Marcelo Miranda (PMDB) e Sergipe - Marcelo Déda (PT) são acusados de uso indevido da mídia, propaganda antecipada e abuso de poder político e econômico. O governador de Rondônia - Ivo Cassol (PPS), denunciado pela compra de votos, foi, também, cassado duas vezes pelo TRE. No Maranhão, o governador Jackson Lago (PDT) foi acusado de distribuir cestas básicas e o governador de Alagoas, Teotônio Vilela (PSDB), teve seu mandato contestado. Cassar um desses é por a mão em um vespeiro de interesses. E, note-se, que dos sete apenas dois (o paraibano e o alagoano) são de um partido de oposição ao governo federal. Os outros cinco apóiam o presidente da República.
O TSE pretendia não mais desgostar a opinião pública, depois de desautorizar os TRE’s que negavam registro de candidatura a políticos “fichas-sujas”. Parecia querer limpar sua própria ficha. Se a cassação de Cássio alertou os outros governadores, o desdobramento mitigou-os.
Foquemos, agora, a atenção nos dois principais atores do mistifório paraibano.
Aprovado por 69% dos paraibanos, o governador Cássio mantém-se no cargo, mas carrega a marca indelével da cassação. Perde tempo dando explicações e chances de projetação em nível nacional. É tratado (pela mídia) como o “governador cassado” e isso poderá servir para que, no futuro, seja preterido em alianças políticas na esfera federal. Sua opção? Terminar o mandato e buscar uma vaga no senado. Óbvio, espera que o tempo, senhor dos esquecimentos, aja.
Ele tem afirmado que a democracia é ameaçada por processos que modificam o resultado das urnas. Certo, o voto é a expressão da vontade popular. Mas, nosso sistema político baseia-se na separação dos poderes. O poder judiciário deve interferir se o executivo infringe leis. A decisão popular é soberana e legal, mas pode equivocar-se e se ilegitimar, daí a intervenção judicial. Se assim fosse, Collor não sofreria o impeachment, já que foi eleito. E, sabemos como eleitores usam o voto como moeda de troca e não para escolher representantes.
O senador José Maranhão exerce seu mandato em Brasília, enquanto aguarda o fim do processo. Seu partido (PMDB) abocanhou a presidência das duas casas do Congresso e, claro, ele se beneficiará disso. Porém, sabe que é temerário assumir um mandato próximo do fim. Lidará com percalços de uma transição onde a equipe que sai não facilita o trabalho da que entra. E, para montar um staff, terá que selecionar aliados, i.e., agradará a uns e desagradará a outros.
Também, se assumir, verá na Assembléia Legislativa a bancada majoritária indo para a oposição. Além do que, restarão dúvidas se ele terá direito a uma ou duas reconduções ao cargo. O seu dilema é sobre as vantagens de trocar de cargo tão próximo da eleição. O fato de, quando perguntado se vai tomar posse, responder, em geral, com evasivas sugere que sua meta não é a de voltar imediatamente ao governo da Paraíba. Ao se colocar como candidato a governador em 2010, Maranhão mostrou uma visão utilitarista da cassação – a vê como forma de desgastar Cássio.
O pior desta tibornice é o modus operandis. A forma como eles se agridem e os métodos utilizados nas últimas eleições, os embates entre as bancadas de oposição e situação na Assembléia Legislativa e na Câmara de Vereadores de Campina Grande - parlamentares que não representam seus eleitores pela sanha de atacar adversários – demonstram que a luta pela hegemonia no poder foi substituída por um combate de vida e morte.
É por isso tudo que vou me contradizer. Desconsiderarei a racionalidade dos atores políticos, pelo menos os da Paraíba. Eles não percebem que essa autofagia política abrirá espaço para novas (digo novas, não recauchutadas) lideranças que possam depurar o oxigênio da política paraibana.
Fevereiro/2009.
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
Frei Beto tenta emparedar o STF com a questão da anistia
No artigo abaixo Frei Beto esclarece, de forma inconteste, porque é preciso punir aqueles que cometeram crimes a serviço do Estado ditatorial. E demonstra que a nossa frágil democracia não se quebrará e nem ficaremos instáveis se fizermos, aqui, o que Chile, Argentina, Guatemala, El Salvador fizeram - puniram exemplarmente seus torturadores.
Brasil - O STF e a verdade histórica
Frei Betto
Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se encontram perante duas alternativas: reiterar a Lei de Anistia e isentar de punição os responsáveis por crimes da ditadura militar ou declarar que suas atrocidades são imprescritíveis e, portanto, passíveis de penalidades.
Escolhida a primeira alternativa, descansarão em paz com os setores militares que mancharam 21 anos de história do Brasil. E terão seus nomes incluídos, pelos historiadores do futuro, entre os que foram coniventes com os graves crimes praticados.
Se prevalecer a segunda alternativa, haverão de reafirmar a independência da corte suprema e terão seus nomes registrados na história por terem ouvido o clamor de justiça das vítimas.
O direito de justiça às vítimas é acentuado pela tradição bíblica. Javé não permite que o sangue de Abel se cristalize em lacre de silêncio, e os apóstolos identificam na ressurreição de Jesus a "volta por cima" daquele que, preso, torturado e assassinado por dois poderes políticos, tem a sua memória perpetuada pelos evangelistas. É o que faz da Igreja primitiva memorial dos mártires, elevados aos altares para que jamais se esqueça o valor de seu sacrifício.
A tese de que "é melhor não reabrir as feridas" é típica de quem se beneficiou de golpes e ditaduras, afirma o espanhol Prudêncio García, representante da ONU na apuração dos crimes da ditadura guatemalteca. O argumento do ministro Gilmar Mendes, de que reabrir o debate traria instabilidade ao país, carece de precedente histórico. Chile, Argentina, Uruguai, Guatemala e El Salvador investigaram os crimes de suas respectivas ditaduras e, ao punir culpados, reforçaram ainda mais o Estado de Direito, pilar do regime democrático.
Na Argentina, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (1984), presidida pelo escritor Ernesto Sábato, extirpou das Forças Armadas os resquícios da ditadura, fez justiça às vítimas, puniu os responsáveis e ainda tornou um dos denunciantes, Adolfo Perez Esquivel, merecedor do Prêmio Nobel da Paz. A Marinha argentina admitiu que utilizaram suas instalações (ESMA) para seqüestrar, torturar e assassinar cidadãos. Nem por isso a democracia se viu ameaçada.
No Chile, a Comissão de Verdade e Reconciliação (1990) passou a limpo a ditadura Pinochet. O Exército reconheceu que, na Villa Grimaldi, presos políticos sofreram torturas até a morte. A Marinha admitiu que o mesmo ocorreu a bordo do navio-escola Esmeralda. Nem por isso a democracia se viu ameaçada.
Em El Salvador, a Comissão da Verdade (1992) teve o patrocínio da ONU. O Exército assumiu sua responsabilidade nos massacres de El Mozote (1981) e dos seis jesuítas da Universidade Centro-Americana (1989), bem como no assassinato do arcebispo Oscar Romero (1980). Nem por isso a democracia se viu ameaçada.
Na Guatemala, a Comissão de Esclarecimento Histórico (1997) fez a filha de uma das vítimas, assassinada pela ditadura, também merecer o Nobel da Paz: Rigoberta Menchú. Os militares daquele país reconheceram que uma ala do Exército cometeu brutal genocídio contra as comunidades indígenas de El Quiché e Petén.
Segundo Prudêncio García, todas essas investigações tiveram em comum o fato de terem sido posteriores a períodos de terríveis conflitos internos; todas trouxeram luz à verdade histórica; todas reiteraram a supremacia da força do Direito sobre o "direito" da força. Em todos os casos, a única parcela da sociedade contrária às apurações foi exatamente a que se beneficiou das graves violações dos direitos humanos.
Walter Benjamin, ao assinar sua filosofia com o próprio sangue, nos adverte que a memória das vítimas jamais se apaga. Não se passa borracha na história. Toda tentativa de fazê-lo resulta em atrocidade intelectual: maculá-la de falsidade e mentira.
Na Alemanha pós-nazista, terminado o julgamento de Nuremberg, iniciou-se um movimento de ocultação da verdade histórica. Hannah Arendt, após 13 anos de exílio na França e nos EUA, reagiu indignada ao regressar: "Os alemães vivem da mentira e da estupidez!" Israel jamais permitiu que a memória das vítimas do nazismo fosse apagada, esquecida ou suprimida da história. O anjo de Paul Klee continua a voar para frente e olhar para trás...
"Portar máscara durante longo tempo estraga a pele", exclama a escritora tcheca Monika Zgustova. "Algo parecido ocorre à sociedade que oculta sua própria culpa com a intenção de livrar-se dela, esquecendo-a. Sociedades e cidadãos devem assumir coletiva e individualmente a responsabilidade do que fazem ou fizeram nossos governos. Este é um dos mais importantes atos da dignidade humana".
O caráter da história do Brasil repousa em mãos dos ministros do STF.
Brasil - O STF e a verdade histórica
Frei Betto
Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se encontram perante duas alternativas: reiterar a Lei de Anistia e isentar de punição os responsáveis por crimes da ditadura militar ou declarar que suas atrocidades são imprescritíveis e, portanto, passíveis de penalidades.
Escolhida a primeira alternativa, descansarão em paz com os setores militares que mancharam 21 anos de história do Brasil. E terão seus nomes incluídos, pelos historiadores do futuro, entre os que foram coniventes com os graves crimes praticados.
Se prevalecer a segunda alternativa, haverão de reafirmar a independência da corte suprema e terão seus nomes registrados na história por terem ouvido o clamor de justiça das vítimas.
O direito de justiça às vítimas é acentuado pela tradição bíblica. Javé não permite que o sangue de Abel se cristalize em lacre de silêncio, e os apóstolos identificam na ressurreição de Jesus a "volta por cima" daquele que, preso, torturado e assassinado por dois poderes políticos, tem a sua memória perpetuada pelos evangelistas. É o que faz da Igreja primitiva memorial dos mártires, elevados aos altares para que jamais se esqueça o valor de seu sacrifício.
A tese de que "é melhor não reabrir as feridas" é típica de quem se beneficiou de golpes e ditaduras, afirma o espanhol Prudêncio García, representante da ONU na apuração dos crimes da ditadura guatemalteca. O argumento do ministro Gilmar Mendes, de que reabrir o debate traria instabilidade ao país, carece de precedente histórico. Chile, Argentina, Uruguai, Guatemala e El Salvador investigaram os crimes de suas respectivas ditaduras e, ao punir culpados, reforçaram ainda mais o Estado de Direito, pilar do regime democrático.
Na Argentina, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (1984), presidida pelo escritor Ernesto Sábato, extirpou das Forças Armadas os resquícios da ditadura, fez justiça às vítimas, puniu os responsáveis e ainda tornou um dos denunciantes, Adolfo Perez Esquivel, merecedor do Prêmio Nobel da Paz. A Marinha argentina admitiu que utilizaram suas instalações (ESMA) para seqüestrar, torturar e assassinar cidadãos. Nem por isso a democracia se viu ameaçada.
No Chile, a Comissão de Verdade e Reconciliação (1990) passou a limpo a ditadura Pinochet. O Exército reconheceu que, na Villa Grimaldi, presos políticos sofreram torturas até a morte. A Marinha admitiu que o mesmo ocorreu a bordo do navio-escola Esmeralda. Nem por isso a democracia se viu ameaçada.
Em El Salvador, a Comissão da Verdade (1992) teve o patrocínio da ONU. O Exército assumiu sua responsabilidade nos massacres de El Mozote (1981) e dos seis jesuítas da Universidade Centro-Americana (1989), bem como no assassinato do arcebispo Oscar Romero (1980). Nem por isso a democracia se viu ameaçada.
Na Guatemala, a Comissão de Esclarecimento Histórico (1997) fez a filha de uma das vítimas, assassinada pela ditadura, também merecer o Nobel da Paz: Rigoberta Menchú. Os militares daquele país reconheceram que uma ala do Exército cometeu brutal genocídio contra as comunidades indígenas de El Quiché e Petén.
Segundo Prudêncio García, todas essas investigações tiveram em comum o fato de terem sido posteriores a períodos de terríveis conflitos internos; todas trouxeram luz à verdade histórica; todas reiteraram a supremacia da força do Direito sobre o "direito" da força. Em todos os casos, a única parcela da sociedade contrária às apurações foi exatamente a que se beneficiou das graves violações dos direitos humanos.
Walter Benjamin, ao assinar sua filosofia com o próprio sangue, nos adverte que a memória das vítimas jamais se apaga. Não se passa borracha na história. Toda tentativa de fazê-lo resulta em atrocidade intelectual: maculá-la de falsidade e mentira.
Na Alemanha pós-nazista, terminado o julgamento de Nuremberg, iniciou-se um movimento de ocultação da verdade histórica. Hannah Arendt, após 13 anos de exílio na França e nos EUA, reagiu indignada ao regressar: "Os alemães vivem da mentira e da estupidez!" Israel jamais permitiu que a memória das vítimas do nazismo fosse apagada, esquecida ou suprimida da história. O anjo de Paul Klee continua a voar para frente e olhar para trás...
"Portar máscara durante longo tempo estraga a pele", exclama a escritora tcheca Monika Zgustova. "Algo parecido ocorre à sociedade que oculta sua própria culpa com a intenção de livrar-se dela, esquecendo-a. Sociedades e cidadãos devem assumir coletiva e individualmente a responsabilidade do que fazem ou fizeram nossos governos. Este é um dos mais importantes atos da dignidade humana".
O caráter da história do Brasil repousa em mãos dos ministros do STF.
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