terça-feira, 2 de junho de 2009

Queria ter 40 anos em 1969.

Faço 40 anos como se degustasse um vinho raro, sorvendo sua essência. Aos 40 não se é mais jovem imprudente e ainda não se ganha lenços e meias. Sinto-me bem - os cabelos brancos não me inquietam e o colesterol está em 166. Tenho esposa e filhos que me amam, um mínimo de experiência, já fiz coisas boas e aposentadoria, para mim, vale tanto quanto um ventilador para um esquimó.


A questão é ter nascido em 1969, o ano maldito em oposição a 1968, que para muitos não terminou. Se ele não findou, então 69 não iniciou. Já li que 69 começou na fatídica sexta-feira-13 (dezembro de 68) quando o AI-5 foi decretado. Nessa excêntrica visão, 68 é o ano das bondades e 69 das maldades – é como se os fatos não se processassem, acontecessem de forma estanque e fossem randomicamente colocados nos anos. Se 68 “mudou vidas”, 69 fez o quê? Meu apreço por 69 dá-se pelo que nele aconteceu e não porque nele nasci. Farei uma seleção, arbitrária como todas, de fatos que queria ter visto in loco, não importando se bons ou ruins, pois a realidade é assim mesmo, diferente do ideal. Veremos que o “museu de grandes novidades”, do qual Cazuza falava, começou em 1969.


Em 1969 “Butch Cassidy and the Sundance Kid”, com Paul Newman e Robert Redford, foi lançado, com bela trilha sonora. O 6° filme de James Bond, “007 a serviço de sua majestade”, saiu com George Lazenby – pior, só Daniel Craig que desconhece a psique bondiana. Tivemos ainda clássicos como “Satiricon”, “Macunaíma”, “Meu ódio será sua herança” e “Perdidos na noite”.


Meus heróis, The Beatles, fizeram “Abbey Road” - arte em forma de disco. Nasci embalado por Something, Come Together, Here Come the Sun, etc. Eles se apresentaram pela última vez, no telhado da Apple Records, em Londres. O show foi encerrado pela polícia, eles riram e John Lennon sentenciou: “the dream is over”. Lennon disse que era só mais uma banda de rock que acabava, pois havia uma nova realidade. Era “apenas” uma banda de rock, mas que banda! Azar meu, cheguei quando eles iam embora.


Pink Floyd lança “Ummagumma” – experimentação e psicodelismo levados as últimas consequências.The Who, com Daltrey & Townshend drogadíssimos, lançou a ópera-rock “Tommy” e em Led Zeppelin II o rock é como tem que ser: guitarras pesadas e distorções. Caetano Veloso lançou seu “álbum branco”, quando ainda era mortal, os Mutantes lançam seu 2° disco com versos como “a vida é um moinho/é um sonho o caminho” e Gal Costa surge com seu primeiro disco solo. Brian Jones, do Rolling Stones, apareceu morto numa piscina. Fiéis ao lema “pedras rolantes não criam musgo”, os Stones lhe dedicaram o show do Hyde Park, em Londres, três dias após a tragédia. Simon & Garfunkel fizeram a turnê de “Bridge Over Troubled Water", gravaram tudo e, 15 anos depois, saiu “Live 1969”, que comprei e ouvi até que minha mãe implorasse para parar.


Chico Buarque lançou um disco com músicas em italiano e foi divulgá-lo na Itália. Lá ficou, pois a obtusidade militar não o pouparia. Ficou seu alônimo Julinho da Adelaide que gravou “Acorda Amor”, mostrando como era o Brasil de 1969. Dizia Julinho: “se eu demorar uns meses convém, às vezes, você sofrer; mas depois de um ano eu não vindo, ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”. Caetano e Gilberto Gil foram presos, humilhados e exilados, mas Gil deixou “Aquele Abraço”.


O IV Festival Internacional da Canção e o V Festival da MPB aconteceram, polêmicos como queria a época e ricos em talentos, apesar de “Dom & Ravel” – o Chitãozinho e Xororó da época, só que pior e a serviço da ditadura. Surgiu o tablóide “Pasquim”, irreverente e debochado, que vendeu 200 mil cópias com Leila Diniz na capa. Enquanto isso, Vinícius de Moraes casava-se pela 5ª vez, tomava seu cachorro engarrafado e compunha, com Tom Jobim, belas canções. Vera Fisher foi eleita Miss Brasil, entrou para o show business e nele manteve-se por bem e/ou por mal. E teve o festival de Woodstock - um desbunde geral, regado a sexo, drogas & rock and roll. Imagine ver Joe Cocker cantando “A Little Help From My Friends”, com aquele vozeirão de bluzeiro do meio-oeste americano?


Tivemos as estréias do Concorde, do Boeing 747, da ArpaNet, embrião da Internet, e se isolou um gene. Nada como Neil Armstrong pisar em solo lunar e dizer a tal frase que, acho, não foi de sua lavra. Os soviéticos não vacilaram e a Soyuz 6 foi dar uma voltinha no espaço. De quebra, foi à primeira transmissão de televisão via satélite para o mundo. Conta minha mãe que assistiu aquilo tudo, emocionada, enquanto eu resumia 69 ao precioso líquido que jorrava do peito dela.


Para o bem e para o mal, estreou o Jornal Nacional da Rede Globo, com Cid Moreira, que já tinha cabelos brancos. Jackie Stewart foi campeão na Fórmula 1 e nasceu Schumacher, hepta campeão – pudera, adversários?, só o fátuo Barrichello. Com o alterego de Edson Arantes do Nascimento, que fez seu milésimo gol, Santos foi campeão e meus times, Campinense Clube e Flamengo, não ganharam nada – resguardavam-se para me alegrarem no futuro.


Nos EUA, Charles Manson mandou os fanáticos de sua seita assassinarem a atriz Sharon Tate e a imprensa usou o fato para desviar a atenção das atrocidades que o exército cometia no Vietnã, como o massacre de My Lai em 68. Nixon entrou na Casa Branca e foi lépido e fagueiro até o desastre da guerra e 250.000 pessoas marcharam em Washigton pedindo o fim dela. Na Líbia, Kadhafi tomou o poder com um golpe e teve sólida carreira de ditador. O Congresso Nacional Palestino apontou Yasser Arafat como líder da OLP e Charles de Gaulle renunciou a presidência devido às ebulições do Maio francês. Prova que 68 acabou e foi sucedido por 69, goste-se ou não disso. O processo histórico é assim mesmo.


A VPR, de Lamarca, e a ALN, de Marighella, sequestraram o embaixador Elbrick. Puderam, por momentos, emparedar a ditadura. Mas, ela deu o troco e fuzilou Marighella no final do ano. Morria um ícone da esquerda, daí tantos amaldiçoarem 69. Já Lamarca desertou do quartel onde servia e foi à luta armada, fez uma imperceptível cirurgia plástica e namorou a musa da revolução, Iara Iavelberg. Tudo em 69, não dava para perder tempo, logo também ele seria morto.


Achando o AI-5 limitado, Costa e Silva decretou 11 Atos Institucionais em 69 e outorgou a 7ª Constituição Brasileira, que incorporou todos os atos e decretos desde o golpe de 64. A ditadura era legalista - o supra-sumo do autoritarismo era disposto em lei. Pródiga em crises institucionais, ela teve uma séria em 69. Costa e Silva teve uma trombose e afastou-se. Assumiu uma junta de três militares, logo alcunhada de “os 3 patetas”, que impediu o vice (civil) Pedro Aleixo de assumir, para ele aprender a não ser “do contra” – recusou-se a assinar o AI-5. Os “patetas” baixaram o AI-14, instituindo a Lei de Segurança Nacional – que previa pena de morte, prisão perpétua e banimento. A linha dura bancou a candidatura de Médici, tido como o pior dos ditadores, mas outro qualquer seria igual, era a lógica da época. Para moldar a geração que viria (a minha) o Decreto-Lei nº 869 pôs “Educação Moral e Cívica” no sistema educacional. E para encerrar o ano político de 69, Paulo Maluf assumiu a prefeitura de São Paulo, iniciando uma eficiente carreira de predador do Estado.


Sinto inveja de Benjamin Button, o personagem de Fitzgerald que nasce velho e morre bebê. Poderia ter nascido em 1929 com 80 anos. Regredindo, em 1969 teria 40 e veria os fatos aqui descritos. Assistiria a um show de Chico Buarque e refletiria sobre as canções, ao invés de ir para os shows de hoje onde se pede para ²tirar os pezinhos do chão e jogar as mãozinhas para cima². Ouviria os lançamentos da época: Abbey Road, Led Zeppelin I, Tommy, discos de Chico, Caetano e Gil, ao invés de ter que aturar nos odiosos “carrinhos de CD pirata”, o excremento que a indústria musical atual produz. Acompanharia as lutas e fatos políticos da época, ao invés de assistir a pasmaceira previsível que se tornou a política atual. Preocupar-me-ia com o “pequeno” passo de Armstrong, ao invés da gripe suína, do aquecimento global e da corrupção estabelecida no Brasil.


Gostaria de ter 40 anos em 1969 e acompanhar tudo in loco. Mas, assim, tal qual Button, hoje eu teria dois meses de vida e seria inane. Como diria Lennon & McCartney, let it be...


Postscriptum: Dedico este artigo a minha “Daisy” (eterna namorada). “No curioso caso de Benjamim Button”, Daisy (Cate Blanchett) é sua paixão. Enquanto ele rejuvenesce, ela envelhece, mas o amor deles resiste a tudo, principalmente ao tempo. Em meu caso, minha Daisy não envelhece. Com seu amor, ternura e alegria oxigena minha vida, impedindo que eu mesmo envelheça.

Junho – 2009.

Um comentário:

Cecília Olliveira disse...

Fantástico texto... Também já sonhei ter vivido esta época passando os olhos em tudo... Excelente!