No clássico “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda trata do “homem cordial”. Para ele, traço definitivo da índole brasileira é a lhaneza no trato, a hospitalidade e a generosidade. Ele afirma mesmo que a cordialidade é nossa maior contribuição para a humanidade. Mas, alerta que ninguém suponha que esse caráter seja sinônimo apenas de boas maneiras e civilidade. Para o brasileiro, ser afável é, também, um modo de resistir. No Brasil pré-republicano os escravos rebelavam-se quando tinham forças para tal. Quando não, usavam a cordialidade para lidarem com a opressão. A polidez, e por que não a submissão, era um meio deliberado de resistência.
A “Lei de Gérson” é uma instituição informal engastada em nossa sociedade. Por ela, se racionaliza a obsessão em se obter vantagens. Seguir essa “norma” é o mesmo que buscar proveitos, num sentido pejorativo claro - é querer ter benefícios passando ao largo da ética e da moral. A expressão surgiu em 1976 quando o meia-armador da seleção tri-campeão do mundo, Gérson, protagonizava um comercial para os Cigarros Vila Rica. A peça publicitária mostrava a marca como vantajosa por ser melhor e ter um módico preço. No final, sorridente, Gérson dizia carregando no sotaque carioca: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também”.
Estranho que um atleta fizesse propaganda de cigarros? A lógica era essa mesma – levar vantagem em tudo, considerando alguns danos. Tudo girava em torno de, numa relação de custo/benefício, ter mais o segundo do que o primeiro. Virou jargão nacional afirmar gostar de levar vantagem em tudo. Mas, em tempos de “politicamente correto” é raro ouvirmos tal expressão, o que não significa que o espírito da “lei de Gérson” tenha caído em desuso.
Acompanhando a Fórmula 1, vi todos os pilotos brasileiros em ação, de Emerson Fittipaldi a Felipe Massa, passando por Nelson Piquet (pai) e Airton Senna. Dois deles me chamam a atenção por atitudes fora e dentro de seus bólidos. Rubens Barrichello seria nosso “homem cordial” e Nelson Piquet (filho) o que se utiliza da “Lei de Gérson”.
Barrichello é cordial, simpático e alegre. Não lembro tê-lo visto agressivo nem quando foi humilhado no episódio em que, liderando o Grande Prêmio da Áustria (12/05/2002) e a caminho da vitória, foi obrigado pelo chefe de sua equipe (Ferrari) a deixar Michael Schumacher passar à sua frente na reta final da corrida. Foi um vexame, uma decepção total! Lembro-me do narrador da corrida (não, não era Galvão Bueno) vibrando e pedindo o “tema da vitória” para logo em seguida gritar desesperadamente que aquilo era um absurdo.
O orgulho nacional estava ferido de morte. Como iríamos gritar Brasil-sil-sil!!! O que faríamos naquele resto de domingo, dia das mães, sem uma vitória para nos entorpecer? Nosso complexo de vira-latas nelson-rodriguiano aflorou à epiderme. Sublevados, exigíamos uma reparação. Queríamos ver Barrichello respondendo à altura da tradição inaugurada por Piquet e Senna. Mas, ele fez-se cordial e disse que tudo era assunto interno da equipe. Sabia ele de sua fragilidade e que se desancasse a falar sofreria penalidades. Era mesmo consciente do raquitismo de seu papel e, adotando a tática dos escravos, resistiu cordialmente.
Sempre que, durante as corridas, a Ferrari “segurava” Barrichello nos boxes por 1 ou 2 segundos visando beneficiar Schumacher eu torcia para que atirasse o capacete em seu carro, em frente às câmeras de TV, e mostrasse que não era leniente para com a injustiça. Mas, ele ria cordialmente. Certa vez, esquiando nos Alpes suíços, disse que (SIC) “Michel é um bom amigo e a Ferrari é a minha segunda casa”. Eu queria mesmo que ele asseverasse os absurdos a que era submetido. Mas, nosso cordial piloto calava receoso de repreensões e de demissão. Apenas dizia que um dia revelaria, em livro, ao mundo tudo o que se passava. Como se o mundo já não soubesse.
Neste ano, com um carro competitivo e chances reais de ser campeão, ele voltou a aceitar o papel de segundo piloto de sua equipe. No Grande Prêmio da Espanha fez, inexplicavelmente, três paradas enquanto seu companheiro Jenson Button fazia duas. Problemas de freios, motor e pneus sempre aconteciam no carro dele, nunca no do seu companheiro. Como sempre, se vitimizou sem admitir que fosse sim preterido. E disse que “se tiver a impressão de que a equipe esteja favorecendo Button, eu paro de correr”. O seu chefe, Ross Brawn (que na Ferrari o mandava deixar Schumacher passar) disse que não havia favoritismo. Mas, na F1, como na vida, existem formas subliminares de se fazer comunicados.
Nelsinho Piquet chegou na F1 referendado pelo pai tri-campeão e capitalizando as esperanças verde-amarelas de voltarmos a ter um novo herói das pistas. Foi se mantendo sem ter resultados palpáveis. Foi claudicando num papel de segundo piloto nos deixando a sensação de que não faria jus ao sobrenome. Mas, eis que surgiu a oportunidade de garantir espaços em sua equipe, de assinar um novo contrato e cessar as ameaças de demissão que sofria. Quando lhe propuseram o embuste que adulteraria os rumos do Grande Prêmio de Cingapura de 2008 ele não pestanejou. Fiel seguidor da “Lei de Gérson” entendeu que é imperativo maximizar benefícios e minimizar custos mesmo prejudicando a outros. Piquet Jr. não quis saber de nada e de ninguém, queria garantir-se na equipe para a temporada de 2009. Como Macunaíma (o herói sem caráter de Mário de Andrade) ele lançou mão da malandragem para fazer frente aos outros pilotos, posto que não conseguisse fazê-lo em disputas com Condições Normais de Temperatura e Pressão.
Muito já se falou que herdamos dos escravos o horror ao trabalho e dos índios a preguiça. E que o amálgama disso foi essa malandragem sem fim, essa contumaz atitude de querer levar vantagem em tudo, utilizando o estratagema da cordialidade. Mesmo não concordando com isso, admito que o malandro é parte de nosso imaginário e de nossa realidade. O mandrião resiste aos modelos, regras e leis para obter vantagens. Ele resiste ao invés de atacar. É cordial, nunca violento. É astuto e vive de “expediente”, como se dizia no passado. Assim como nossos dois intrépidos pilotos, o madraço sempre dá um “jeitinho” em tudo para ir driblando as dificuldades e assim sobreviver ou, como queira, “se dar bem e levar vantagem em tudo”.
Outubro/2009.
Professor do Curso de História da Univ. Estadual da Paraíba desde 1993. Mestre em Ciência Política-UFPE e Doutorando em Ciência da Informação-UFPB. Especialista em História do Brasil, com ênfase na Era Vargas e na Ditadura Militar, na democracia e no autoritarismo. Autor dos livros "Heróis de uma revolução anunciada ou aventureiros de um tempo perdido" (2015) e “Do que ainda posso falar e outros ensaios - Ou quanto de verdade ainda se pode aceitar” (2024), ambos lançados pela Editora da UEPB.
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
O dilema Jack Bauer – altercações sobre legitimidade e legalidade.
Sob que aspectos um ato legal torna-se ilegal e vice-versa? Em que medida a violência torna-se um direito? Pode o cidadão levantar-se contra o Estado? Estas questões, tratadas desde Maquiavel, me aparecem quando atento para nossa realidade, onde violência e criminalidade (organizada ou não), corrupção e desmandos institucionais de toda sorte ditam nossa conduta.
Quando os governos merecem nossa lealdade e quando devemos negá-la? Quem deve julgar, e com que critérios, se as leis e as ações que exigem lealdade ao Estado se justificam? O povo? A justiça? Ou ambos? Tecnicamente a autoridade é legítima. Mas, deve haver limites para ela quando utilizada pelo Estado, através de suas instituições coercitivas.
No Brasil, existe o Estado e a lei, mas o Estado de Direito é constantemente ameaçado, quando não inexiste. Vejamos os ataques às instituições coercitivas (e a sociedade) promovidos por organizações criminosas, não simples bandos ou quadrilhas, em São Paulo (em maio de 2006) e recentemente em Salvador. Elas possuem controle social e territorial, dominam os presídios onde seus líderes são confinados, têm um forte poder corruptor que as leva para dentro das instituições, além de influenciarem eleições e controlarem o tráfico de drogas e crimes correlatos ou não. Ao se sentirem ameaçadas pelas tentativas dos governos estaduais em sufocá-las, contra-atacam acuando-os. O cidadão, indefeso, clama por segurança, mas o Estado não consegue provê-la e segue se deslegitimando perante a população.
Prova cabal de como o Estado não consegue prover segurança pública, uma de suas funções precípuas, é que os chefões dessas complexas redes criminosas são encarcerados em presídios de segurança máxima, submetidos a duros regimes disciplinares, e mesmo assim continuam a gerir suas atividades ilícitas usando uma rede de comunicação via celulares, advogados e familiares.
É comum vermos atores políticos confundirem legitimidade e legalidade. Na academia não é diferente e para o senso comum “se está na lei é legítimo”. Constatei que os dicionários corroboram para que estes termos sigam parecendo sinônimos. No Aurélio, legitimar é o “ato de tornar legítimo para todos os efeitos da lei, legalizar”; e legalizar é o “ato de tornar legal, dar força de lei, autenticar, legitimar, justificar”. A questão não é apenas de ordem semântica, ela é jurídica e, acima de tudo, política.
Na cassação dos governadores da Paraíba, Cássio Cunha Lima, e do Maranhão, Jackson Lago, viu-se esta distorção. Afirmava-se que a democracia é ameaçada por processos judiciais que modificam o resultado das urnas e que a legalidade de uma eleição, baseada na inconteste expressão da vontade popular, não pode ser infringida. Mas, nosso sistema político baseia-se na separação dos poderes. O judiciário deve interferir se o executivo infringe leis, deslegitimando-se. A decisão popular é soberana e legal, mas pode equivocar-se e se ilegitimar, daí a intervenção judicial. Se assim fosse, Collor não teria sofrido o impeachment, já que foi eleito. E bem sabemos como eleitores e políticos usam o voto como moeda de troca e não para decidir quem representa quem.
Filósofos da política moderna se preocuparam com essa distinção. Para Hobbes, o Estado pode exerce legalmente o monopólio da coerção, desde que provenha segurança aos cidadãos, se não o fizer torna-se ilegítimo. Locke fazia a distinção observando que o direito consiste na liberdade de fazermos, ou não, algo e que é a lei que determina o que deve e pode ser feito - costumes e preceitos só viram lei se fruto da vontade dos homens. Rousseau relacionava legitimidade com os direitos e afirmava que a sociedade só se desenvolve se for consignada pela vontade geral do povo, de onde emana o poder. Kant citava o caso do cidadão que discorda do imposto a ser pago. Mesmo sendo legítima sua divergência, ele, de posse de sua razão, cumpre seu dever, já que se não o fizer sofrerá sansões. O cidadão só faz o que não concorda por legitimar o Estado, se considerar apenas o aspecto legal, poderá torna-se inadimplente se, e é o caso do Brasil, contar com a impunidade.
Os fundamentos iluministas (a crença na ciência e na razão e o compromisso com os direitos do homem) influenciaram os argumentos dos contratualistas a respeito da origem e dos fins da legitimidade política e de sua íntima relação com o consentimento – um Estado só é lídimo para agir se os cidadãos lhe derem permissão. E esta anuência só ocorre se ele cumpre seu papel de, por exemplo, prover segurança e punir aqueles que decidem viver à margem da lei. Se aceita e/ou cria formas para que a impunidade possa grassar por entre suas instituições se deslegitima perante seus cidadãos. O leitor já sabe que me refiro ao Estado brasileiro.
O cientista político Ian Shapiro mostra, em “Os fundamentos morais da política”, que a legitimidade dos Estados relaciona-se ao grau de preservação, ou enfraquecimento, das liberdades que eles podem (ou querem) promover. O arcabouço jurídico de um Estado pode ser utilizado para garantir ou cercear a lei que tanto serve a democracias quanto a ditaduras. Mas, a legitimidade só é útil a um sistema em que o exercício do poder se dá prioritariamente para o bem-estar coletivo. Uma lei não é legítima por definição. É o uso que se faz dela que a torna legítima ou ilegítima.
As instituições políticas que dão forma ao Estado não se bastam por serem legais (instituídas), precisam ser, também, legítimas. Os contratualistas, que foram dando forma ao Estado-nação, o fizeram a partir das normas que o regulam. E para eles, é o caso de Rousseau, as normas devem ser justas e, como queria Montesquieu, respeitadas.
Não basta um Estado ter leis (rule of law), onde espera-se que todos a respeitem. Isso não permite saber se as instituições conseguem cumprir seus papéis adequadamente, i.e., não dá para saber se elas conseguem distribuir bem-estar. É preciso que Estado e governo sejam pela lei (rule by law), i.e., elas precisam serem justas e propiciar as melhores condições para a distribuição do bem-estar. O cidadão precisa crer que as leis vão ser (para o bem ou para o mal) aplicadas. Só assim ele vai consignar ao Estado, e ao governo, sua confiança, i.e., legitimá-los.
A injustiça é praticada na sua forma mais perversa quando é instituída por uma determinação legal. Se uma injustiça é formalizada pela lei dificilmente pode-se dela defender. É o caso do Ato Institucional n° 5, decretado pelo governo militar de Costa e Silva em 1968 - a ditadura era, paradoxalmente, constitucionalista. Como a própria nomenclatura demonstra, ele era legal (foi institucionalizado), mas não tinha veleidades de ser legítimo.
Portanto, nem tudo o que é legítimo é legal. É o caso do dilema Jack Bauer – o protagonista do seriado “24 horas”. Tecnicamente, ele é contra o uso da tortura, mas decide utilizá-la para arrancar de um terrorista a informação que levará a desativação de uma bomba que, se acionada, matará centenas de pessoas. Que não sirva de orgulho, mas temos versão própria do agente da OCT – o Cap. Nascimento (do filme Tropa de Elite) utiliza a tortura para conduzir com discutível eficiência seus interrogatórios. É, sim, legítimo usar qualquer meio para forçar um terrorista ou traficante a confessarem atos criminosos que prejudicam a comunidade, mas é legal?
E nem tudo o que é legal é legítimo. As Medidas Provisórias, usadas em profusão pelo governo federal são legais, previstas em nosso ordenamento jurídico, mas não são legitimas, por desrespeitarem o princípio da separação dos poderes. Simples assim.
Não devem existir dilemas entre legitimidade e legalidade, e sim complementaridades. É para isso que ainda temos que caminhar se quisermos ter um Estado e um governo legitimados por nós mesmos, que seja a um só tempo dá e pela lei.
Outubro/2009.
Quando os governos merecem nossa lealdade e quando devemos negá-la? Quem deve julgar, e com que critérios, se as leis e as ações que exigem lealdade ao Estado se justificam? O povo? A justiça? Ou ambos? Tecnicamente a autoridade é legítima. Mas, deve haver limites para ela quando utilizada pelo Estado, através de suas instituições coercitivas.
No Brasil, existe o Estado e a lei, mas o Estado de Direito é constantemente ameaçado, quando não inexiste. Vejamos os ataques às instituições coercitivas (e a sociedade) promovidos por organizações criminosas, não simples bandos ou quadrilhas, em São Paulo (em maio de 2006) e recentemente em Salvador. Elas possuem controle social e territorial, dominam os presídios onde seus líderes são confinados, têm um forte poder corruptor que as leva para dentro das instituições, além de influenciarem eleições e controlarem o tráfico de drogas e crimes correlatos ou não. Ao se sentirem ameaçadas pelas tentativas dos governos estaduais em sufocá-las, contra-atacam acuando-os. O cidadão, indefeso, clama por segurança, mas o Estado não consegue provê-la e segue se deslegitimando perante a população.
Prova cabal de como o Estado não consegue prover segurança pública, uma de suas funções precípuas, é que os chefões dessas complexas redes criminosas são encarcerados em presídios de segurança máxima, submetidos a duros regimes disciplinares, e mesmo assim continuam a gerir suas atividades ilícitas usando uma rede de comunicação via celulares, advogados e familiares.
É comum vermos atores políticos confundirem legitimidade e legalidade. Na academia não é diferente e para o senso comum “se está na lei é legítimo”. Constatei que os dicionários corroboram para que estes termos sigam parecendo sinônimos. No Aurélio, legitimar é o “ato de tornar legítimo para todos os efeitos da lei, legalizar”; e legalizar é o “ato de tornar legal, dar força de lei, autenticar, legitimar, justificar”. A questão não é apenas de ordem semântica, ela é jurídica e, acima de tudo, política.
Na cassação dos governadores da Paraíba, Cássio Cunha Lima, e do Maranhão, Jackson Lago, viu-se esta distorção. Afirmava-se que a democracia é ameaçada por processos judiciais que modificam o resultado das urnas e que a legalidade de uma eleição, baseada na inconteste expressão da vontade popular, não pode ser infringida. Mas, nosso sistema político baseia-se na separação dos poderes. O judiciário deve interferir se o executivo infringe leis, deslegitimando-se. A decisão popular é soberana e legal, mas pode equivocar-se e se ilegitimar, daí a intervenção judicial. Se assim fosse, Collor não teria sofrido o impeachment, já que foi eleito. E bem sabemos como eleitores e políticos usam o voto como moeda de troca e não para decidir quem representa quem.
Filósofos da política moderna se preocuparam com essa distinção. Para Hobbes, o Estado pode exerce legalmente o monopólio da coerção, desde que provenha segurança aos cidadãos, se não o fizer torna-se ilegítimo. Locke fazia a distinção observando que o direito consiste na liberdade de fazermos, ou não, algo e que é a lei que determina o que deve e pode ser feito - costumes e preceitos só viram lei se fruto da vontade dos homens. Rousseau relacionava legitimidade com os direitos e afirmava que a sociedade só se desenvolve se for consignada pela vontade geral do povo, de onde emana o poder. Kant citava o caso do cidadão que discorda do imposto a ser pago. Mesmo sendo legítima sua divergência, ele, de posse de sua razão, cumpre seu dever, já que se não o fizer sofrerá sansões. O cidadão só faz o que não concorda por legitimar o Estado, se considerar apenas o aspecto legal, poderá torna-se inadimplente se, e é o caso do Brasil, contar com a impunidade.
Os fundamentos iluministas (a crença na ciência e na razão e o compromisso com os direitos do homem) influenciaram os argumentos dos contratualistas a respeito da origem e dos fins da legitimidade política e de sua íntima relação com o consentimento – um Estado só é lídimo para agir se os cidadãos lhe derem permissão. E esta anuência só ocorre se ele cumpre seu papel de, por exemplo, prover segurança e punir aqueles que decidem viver à margem da lei. Se aceita e/ou cria formas para que a impunidade possa grassar por entre suas instituições se deslegitima perante seus cidadãos. O leitor já sabe que me refiro ao Estado brasileiro.
O cientista político Ian Shapiro mostra, em “Os fundamentos morais da política”, que a legitimidade dos Estados relaciona-se ao grau de preservação, ou enfraquecimento, das liberdades que eles podem (ou querem) promover. O arcabouço jurídico de um Estado pode ser utilizado para garantir ou cercear a lei que tanto serve a democracias quanto a ditaduras. Mas, a legitimidade só é útil a um sistema em que o exercício do poder se dá prioritariamente para o bem-estar coletivo. Uma lei não é legítima por definição. É o uso que se faz dela que a torna legítima ou ilegítima.
As instituições políticas que dão forma ao Estado não se bastam por serem legais (instituídas), precisam ser, também, legítimas. Os contratualistas, que foram dando forma ao Estado-nação, o fizeram a partir das normas que o regulam. E para eles, é o caso de Rousseau, as normas devem ser justas e, como queria Montesquieu, respeitadas.
Não basta um Estado ter leis (rule of law), onde espera-se que todos a respeitem. Isso não permite saber se as instituições conseguem cumprir seus papéis adequadamente, i.e., não dá para saber se elas conseguem distribuir bem-estar. É preciso que Estado e governo sejam pela lei (rule by law), i.e., elas precisam serem justas e propiciar as melhores condições para a distribuição do bem-estar. O cidadão precisa crer que as leis vão ser (para o bem ou para o mal) aplicadas. Só assim ele vai consignar ao Estado, e ao governo, sua confiança, i.e., legitimá-los.
A injustiça é praticada na sua forma mais perversa quando é instituída por uma determinação legal. Se uma injustiça é formalizada pela lei dificilmente pode-se dela defender. É o caso do Ato Institucional n° 5, decretado pelo governo militar de Costa e Silva em 1968 - a ditadura era, paradoxalmente, constitucionalista. Como a própria nomenclatura demonstra, ele era legal (foi institucionalizado), mas não tinha veleidades de ser legítimo.
Portanto, nem tudo o que é legítimo é legal. É o caso do dilema Jack Bauer – o protagonista do seriado “24 horas”. Tecnicamente, ele é contra o uso da tortura, mas decide utilizá-la para arrancar de um terrorista a informação que levará a desativação de uma bomba que, se acionada, matará centenas de pessoas. Que não sirva de orgulho, mas temos versão própria do agente da OCT – o Cap. Nascimento (do filme Tropa de Elite) utiliza a tortura para conduzir com discutível eficiência seus interrogatórios. É, sim, legítimo usar qualquer meio para forçar um terrorista ou traficante a confessarem atos criminosos que prejudicam a comunidade, mas é legal?
E nem tudo o que é legal é legítimo. As Medidas Provisórias, usadas em profusão pelo governo federal são legais, previstas em nosso ordenamento jurídico, mas não são legitimas, por desrespeitarem o princípio da separação dos poderes. Simples assim.
Não devem existir dilemas entre legitimidade e legalidade, e sim complementaridades. É para isso que ainda temos que caminhar se quisermos ter um Estado e um governo legitimados por nós mesmos, que seja a um só tempo dá e pela lei.
Outubro/2009.
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