sexta-feira, 16 de outubro de 2009

O “homem cordial” e a “Lei de Gérson”.

No clássico “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda trata do “homem cordial”. Para ele, traço definitivo da índole brasileira é a lhaneza no trato, a hospitalidade e a generosidade. Ele afirma mesmo que a cordialidade é nossa maior contribuição para a humanidade. Mas, alerta que ninguém suponha que esse caráter seja sinônimo apenas de boas maneiras e civilidade. Para o brasileiro, ser afável é, também, um modo de resistir. No Brasil pré-republicano os escravos rebelavam-se quando tinham forças para tal. Quando não, usavam a cordialidade para lidarem com a opressão. A polidez, e por que não a submissão, era um meio deliberado de resistência.


A “Lei de Gérson” é uma instituição informal engastada em nossa sociedade. Por ela, se racionaliza a obsessão em se obter vantagens. Seguir essa “norma” é o mesmo que buscar proveitos, num sentido pejorativo claro - é querer ter benefícios passando ao largo da ética e da moral. A expressão surgiu em 1976 quando o meia-armador da seleção tri-campeão do mundo, Gérson, protagonizava um comercial para os Cigarros Vila Rica. A peça publicitária mostrava a marca como vantajosa por ser melhor e ter um módico preço. No final, sorridente, Gérson dizia carregando no sotaque carioca: “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também”.


Estranho que um atleta fizesse propaganda de cigarros? A lógica era essa mesma – levar vantagem em tudo, considerando alguns danos. Tudo girava em torno de, numa relação de custo/benefício, ter mais o segundo do que o primeiro. Virou jargão nacional afirmar gostar de levar vantagem em tudo. Mas, em tempos de “politicamente correto” é raro ouvirmos tal expressão, o que não significa que o espírito da “lei de Gérson” tenha caído em desuso.


Acompanhando a Fórmula 1, vi todos os pilotos brasileiros em ação, de Emerson Fittipaldi a Felipe Massa, passando por Nelson Piquet (pai) e Airton Senna. Dois deles me chamam a atenção por atitudes fora e dentro de seus bólidos. Rubens Barrichello seria nosso “homem cordial” e Nelson Piquet (filho) o que se utiliza da “Lei de Gérson”.


Barrichello é cordial, simpático e alegre. Não lembro tê-lo visto agressivo nem quando foi humilhado no episódio em que, liderando o Grande Prêmio da Áustria (12/05/2002) e a caminho da vitória, foi obrigado pelo chefe de sua equipe (Ferrari) a deixar Michael Schumacher passar à sua frente na reta final da corrida. Foi um vexame, uma decepção total! Lembro-me do narrador da corrida (não, não era Galvão Bueno) vibrando e pedindo o “tema da vitória” para logo em seguida gritar desesperadamente que aquilo era um absurdo.


O orgulho nacional estava ferido de morte. Como iríamos gritar Brasil-sil-sil!!! O que faríamos naquele resto de domingo, dia das mães, sem uma vitória para nos entorpecer? Nosso complexo de vira-latas nelson-rodriguiano aflorou à epiderme. Sublevados, exigíamos uma reparação. Queríamos ver Barrichello respondendo à altura da tradição inaugurada por Piquet e Senna. Mas, ele fez-se cordial e disse que tudo era assunto interno da equipe. Sabia ele de sua fragilidade e que se desancasse a falar sofreria penalidades. Era mesmo consciente do raquitismo de seu papel e, adotando a tática dos escravos, resistiu cordialmente.


Sempre que, durante as corridas, a Ferrari “segurava” Barrichello nos boxes por 1 ou 2 segundos visando beneficiar Schumacher eu torcia para que atirasse o capacete em seu carro, em frente às câmeras de TV, e mostrasse que não era leniente para com a injustiça. Mas, ele ria cordialmente. Certa vez, esquiando nos Alpes suíços, disse que (SIC) “Michel é um bom amigo e a Ferrari é a minha segunda casa”. Eu queria mesmo que ele asseverasse os absurdos a que era submetido. Mas, nosso cordial piloto calava receoso de repreensões e de demissão. Apenas dizia que um dia revelaria, em livro, ao mundo tudo o que se passava. Como se o mundo já não soubesse.


Neste ano, com um carro competitivo e chances reais de ser campeão, ele voltou a aceitar o papel de segundo piloto de sua equipe. No Grande Prêmio da Espanha fez, inexplicavelmente, três paradas enquanto seu companheiro Jenson Button fazia duas. Problemas de freios, motor e pneus sempre aconteciam no carro dele, nunca no do seu companheiro. Como sempre, se vitimizou sem admitir que fosse sim preterido. E disse que “se tiver a impressão de que a equipe esteja favorecendo Button, eu paro de correr”. O seu chefe, Ross Brawn (que na Ferrari o mandava deixar Schumacher passar) disse que não havia favoritismo. Mas, na F1, como na vida, existem formas subliminares de se fazer comunicados.


Nelsinho Piquet chegou na F1 referendado pelo pai tri-campeão e capitalizando as esperanças verde-amarelas de voltarmos a ter um novo herói das pistas. Foi se mantendo sem ter resultados palpáveis. Foi claudicando num papel de segundo piloto nos deixando a sensação de que não faria jus ao sobrenome. Mas, eis que surgiu a oportunidade de garantir espaços em sua equipe, de assinar um novo contrato e cessar as ameaças de demissão que sofria. Quando lhe propuseram o embuste que adulteraria os rumos do Grande Prêmio de Cingapura de 2008 ele não pestanejou. Fiel seguidor da “Lei de Gérson” entendeu que é imperativo maximizar benefícios e minimizar custos mesmo prejudicando a outros. Piquet Jr. não quis saber de nada e de ninguém, queria garantir-se na equipe para a temporada de 2009. Como Macunaíma (o herói sem caráter de Mário de Andrade) ele lançou mão da malandragem para fazer frente aos outros pilotos, posto que não conseguisse fazê-lo em disputas com Condições Normais de Temperatura e Pressão.


Muito já se falou que herdamos dos escravos o horror ao trabalho e dos índios a preguiça. E que o amálgama disso foi essa malandragem sem fim, essa contumaz atitude de querer levar vantagem em tudo, utilizando o estratagema da cordialidade. Mesmo não concordando com isso, admito que o malandro é parte de nosso imaginário e de nossa realidade. O mandrião resiste aos modelos, regras e leis para obter vantagens. Ele resiste ao invés de atacar. É cordial, nunca violento. É astuto e vive de “expediente”, como se dizia no passado. Assim como nossos dois intrépidos pilotos, o madraço sempre dá um “jeitinho” em tudo para ir driblando as dificuldades e assim sobreviver ou, como queira, “se dar bem e levar vantagem em tudo”.



Outubro/2009.

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