terça-feira, 4 de maio de 2010

Suicídio institucional

Marcos Nobre, neste artigo publicado na Folha de SÃo Paulo de hoje (04/05/2010), demonstra bem os riscos que corremos ao termos a suprema corte deste país interpretando de forma tão equivoca a revisão (ou não) da Lei da Anistia de 1979. A sua constatação final, de que se "... fez uma lei aprovada sob a ditadura militar a fonte originária da ordem democrática vigente", demonstra bem as fragilidades e suscetibilidades de nossa democracia..


Suicídio institucional

O Supremo Tribunal Federal conseguiu mais uma vez embrulhar as contradições brasileiras para presente. Decidiu que não lhe cabe interpretar a Lei da Anistia, de 1979. Decidiu que anistia é assunto do Poder Legislativo, não do Judiciário. Ou seja, tomou uma decisão política dizendo que não lhe cabe tomar decisões políticas. Na história recente do tribunal, não há nisso nenhuma novidade. Só que o caso da Lei da Anistia é particularmente grave. Não apenas pelo resultado, lamentável por si mesmo, mas, principalmente, porque o STF decidiu abdicar de seu papel de interpretar a legislação passada e presente à luz da Constituição de 1988.

O STF manteve em vigência uma lei sem examinar de fato se ela é compatível com a Constituição. É verdade que seria um exercício de ginástica intelectual digno de medalha conciliar Estado democrático de Direito e tortura. Mas esse é o ônus que caberia ao tribunal que, recusando o pedido de interpretação da lei apresentado pela OAB, pretendesse também preservar sua integridade institucional. Da maneira como agiu, o tribunal disse de público que, a depender da conveniência política do momento, pode perfeitamente deixar de exercer as suas funções. Nada pode ser mais perigoso para a democracia de um país. O STF resolveu embrulhar a contradição de sua decisão com o papel movediço da história. Decidiu basear sua decisão em uma "exceção histórica". A Lei da Anistia teria resultado de uma negociação política que teria produzido a "conciliação" do país. Nos termos do voto do presidente do STF, Cezar Peluso, "o Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia".

Mas o presidente do Supremo foi além de projetar no passado uma conciliação imaginária. Afirmou ainda que a "lei nasceu de um acordo de quem tinha legitimidade para celebrar esse pacto".A ministra Ellen Gracie não apenas aceitou a tese da legitimidade das partes em um acordo realizado em condições ditatoriais como criou algo que poderia ser chamado de o "paradoxo de Gracie". Para a ministra, a não recepção da Lei da Anistia pela Constituição de 1988 "conduziria ao paradoxo de retirar o benefício de todos quantos foram por ela alcançados". Em outras palavras, sem a Lei da Anistia não haveria a Constituição de 1988. Para sustentar o insustentável, o STF acabou por fazer da lei de 1979 o sustentáculo histórico da Constituição dita cidadã. Fez de uma lei aprovada sob a ditadura militar a fonte originária da ordem democrática vigente.É uma atitude bem mais do que paradoxal. É um autêntico suicídio institucional.

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