Eis nossa 21ª eleição direta para presidente. Em 121 anos de história republicana tivemos, em média, uma eleição a cada seis anos. Mesmo com desrespeitos sofridos por nossas instituições, há 22 anos elegemos governantes e parlamentares para os três entes da federação. Assim, com tantas eleições, achamos que “nossa democracia está amadurecida, pois o sistema eleitoral brasileiro é modelar para o mundo inteiro”.
Seria, para nossa história republicana, alvissareiro ter tantas eleições não fossem os quinze militares presidentes; os quatro presidentes empossados e depostos, os três que renunciaram e dois que, eleitos, não foram empossados, além de sete que governaram sem ter voto algum. Foram nove eleições indiretas (com votações no Congresso Nacional) e quatro golpes de Estado bem sucedidos, para não falar das tentativas. Nosso processo eleitoral evoluiu manquitolando. Em 1960, última eleição antes do golpe de 1964, 6 milhões de eleitores votaram. Na seguinte, 29 anos depois, foram 120 milhões de eleitores. Crescíamos quantitativamente enquanto desaprendíamos a votar.
Lidamos com a democracia em termos quantitativos e não cuidamos de sua qualidade. Ainda não atentamos para o fato de que eleição é condição necessária, porém insuficiente das democracias. Há tanto exercendo o sufrágio universal o que sabemos sobre a representatividade? Ao ver o palhaço Tiririca eleito com mais de 1 milhão de votos, a resposta é pouco, quase nada! Seguimos sem saber o real significado de contratar a representação política pelo sufrágio.
Useiros e vezeiros na “arte” da representação nos blasonamos dos números exacerbados, mas não da qualidade. Ufanamo-nos da eficiência do sistema eleitoral com suas urnas eletrônicas e a rapidez com que saem os resultados, i.e., valorizamos a forma, não o conteúdo. Tivéssemos uma essência democrática, Tiririca não seria siquer candidato, quanto mais eleito. Mas, porque ele não poderia ser candidato? Por que é semi-analfabeto ou coisa que o valha? Em hipótese nenhuma, não!
Em tempo, no Dicionário Aurélio o verbete Tiririca possui três significados: (1) erva daninha que invade velozmente terrenos cultivados ou caule tuberculoso que dificilmente se erradica, a não ser com poderoso herbicida; (2) pessoa furiosa; (3) punguista, batedor de carteiras.
Tiririca não existe, é criação de Francisco Oliveira Silva – um imigrante nordestino que, ido tentar a sorte em São Paulo, resolveu fazer graça de sua miserabilidade econômica, social e intelectual e fez-se famoso por (des)graça da indústria do entretenimento que transforma o nada em tudo. Votou-se neste tal Francisco Silva ou em um palhaço que não tem a menor graça? Quantos votaram conscientes? Quantos votaram para protestar ou desvalorizar o sistema eleitoral brasileiro?
Tiririca não tem méritos para reivindicar uma cadeira no parlamento. A forma risível como se apresentou diz muito do que pretende. O escárnio o qual trata a instituição que fará parte justificaria não obter votos. Seus bordões de campanha retratam o descompromisso para com res pública. Ao dizer “vote em Tiririca, pior não fica”, avisa que o tipo de representação que temos é ruim, que vai piorar e que se esforçará neste sentido. Ao zombetear: “Você sabe o que faz um deputado federal? Eu não sei, mas vote em mim que eu te conto”, sinaliza que pretende se locupletar do erário. Os que elegeram Tiririca não pensaram na qualidade da democracia, nem no que ele pode fazer em nome da representação. Claro, o que quer que ele faça é responsabilidade, também, de todos os “tiriricas” que nele votaram.
A revista Época trouxe matéria mostrando que pouco se sabe das funções de um deputado. Em uma pesquisa, 60% dos entrevistados afirmaram que um parlamentar serve para arrumar empregos, ajudar aliados em negócios com o governo e promover eventos de lazer. A lógica é tacanha mesmo - o deputado não serve para aprovar leis ou fiscalizar os atos do governo, ele seria a mão invisível que retira do Estado benesses (e outras coisas mais) para si e para seus aliados. Tiririca dizia que queria ser deputado para ajudar os miseráveis, a começar pelos seus parentes.
Agora, a dúvida é em qual das três categorias, dispostas no Aurélio, ele se encaixará. Será uma erva daninha dificilmente erradicável? Um deputado furioso? Será um contumaz punguista das finanças públicas? Ou as três coisas juntas? Aguardemos, o tempo nos dirá. Mas, por favor, não façamos apostas, pois as três opções são péssimas.
Assim, resta-me o Jus esperniandis – o direito de protestar ex-post facto. Tiririca, os ex-jogadores de futebol, as “mulheres-frutas”, os cantores escatológicos e os néscios de toda sorte diziam a mesma coisa: “Quero me eleger para me dar bem”. Foram eleitos por um sistema que quase tudo aceita e que se recusa a fazer uma reforma política que impeça que a palhaçada se instale no Congresso Nacional como erva daninha. Esses tiriricas expuseram a face mais ridícula, antidemocrática e cruel de uma sociedade que costuma fazer pouco caso de suas instituições.
Em 1953 Robert Dahl cunhou o termo poliarquia para denominar um tipo de democracia representativa moderna. Um sistema político dotado de instituições democráticas, com funcionários eleitos, eleições livres, justas e freqüentes, onde a liberdade de expressão, as fontes de informação diversificadas, a autonomia para a associação e a cidadania inclusiva sejam de fato e de direito. Esta poliarquia não poderia preceder desses elementos e a falta de apenas um deles deixaria o conceito capenga. Como se vê, estamos bem longe de sermos uma poliarquia.
Com tantas tiriricas a solta, empestando nossas instituições como ervas daninha ou coisa pior, como podemos denominar nosso sistema político? Palhaçocracia?
Outubro/2010.
Professor do Curso de História da Univ. Estadual da Paraíba desde 1993. Mestre em Ciência Política-UFPE e Doutorando em Ciência da Informação-UFPB. Especialista em História do Brasil, com ênfase na Era Vargas e na Ditadura Militar, na democracia e no autoritarismo. Autor dos livros "Heróis de uma revolução anunciada ou aventureiros de um tempo perdido" (2015) e “Do que ainda posso falar e outros ensaios - Ou quanto de verdade ainda se pode aceitar” (2024), ambos lançados pela Editora da UEPB.
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