terça-feira, 18 de março de 2008

1968 – O ANO QUE TEIMA EM NÃO TERMINAR.

Parte I: heróis e aventureiros de um tempo de utopias e autoritarismos.

Abro uma exceção para discutir a mini-série da Rede Globo Queridos Amigos. Coincide falar dela devido aos 40 anos de 1968 – o ano-platônico-base, que se eternizou para uns e nunca existiu para outros. Queridos Amigos é a crônica do mundo real que parte da esquerda brasileira insiste em não enxergar. Ou, se aceita vê-lo, o faz com lentes que turvam sua visão. Atores políticos da esquerda (José Dirceu, por exemplo) enxergam seu passado, materializando-o em 68, com as cores de um mundo que infelizmente (ou felizmente?) não existiu e, talvez, jamais exista. Esse tal mundo esquerdista se tornaria real tão somente pela força das idéias.

Queridos Amigos é a narração de quem tem que conviver com a incômoda sensação da derrota. É a história e o cotidiano daqueles que se prepararam para tomar o poder e que não cogitavam serem derrotados em hipótese nenhuma - eles não estavam preparados para perder!

A esquerda revolucionária não se preparou para ser derrotada por um inimigo sórdido que usava a tortura e o assassinato para reprimi-la. Não estava pronta para ser represada, mesmo porque racionalizava suas ações violentas pela ótica da justiça revolucionária leninista. Haveria, então, dois tipos de violência: uma que era da direita ditatorial, suja, sanguinária e injusta; e outra que era da esquerda revolucionária, pura, comprometida com o povo e, portanto, justa.

O que se buscava era um fim nobre e para isso valia qualquer meio, violento que fosse. Os personagens da mini-série questionam uns aos outros como puderam ser arruinados se a causa a que dedicaram suas vidas era tão nobre. São infensos a enfrentar uma nova realidade, imposta a partir do fim da guerra fria e da crise do socialismo real, onde liberdade e igualdade não mais se antagonizam, pelo contrário, juntam-se para formar uma sociedade verdadeiramente democrática.

Anos depois (a história se passa em 1989), aqueles que se dispuseram a tudo em nome de uma nobre causa tentam viver fiéis a seus ideais e, enfrentando a dura realidade de um país saído de uma ditadura e com uma inflação altissonante, se vêem as voltas com os dramas existenciais, profissionais, sentimentais, familiares e político-ideológicos.


“Queridos Amigos” fala daqueles que, as vésperas da queda do muro de Berlim, ainda viam boas intenções por trás dos atos de Stálin, que só os teria cometido em defesa da pátria socialista. Mais uma vez, a tese dos tais fins últimos justificando todo e qualquer meio. Esses personagens encobriam, com o véu de um puro idealismo, uma já anacrônica defesa da ditadura do proletariado, que na verdade não passava de um projeto de sociedade extremamente autoritário.

“Queridos Amigos” deveria, eu assim me comprazeria, incomodar os empedernidos ativistas da esquerda brasileira. Aqueles mesmos que abominam tudo o que venha da (SIC) “grande mídia burguesa”, leia-se Rede Globo, e dos “tablóides do conservadorismo”, leia-se Folha de São Paulo. São os que elegeram Hugo Chávez substituto de Fidel Castro na liderança da esquerda latino-americana e por desconhecimento/ignorância (ou, pior, com acintoso propósito) não vêem, ou não querem e/ou não podem admitir, que ele está levando a Venezuela para uma ditadura e que ainda pode causar estragos com seu discurso belicoso e irresponsável.

São os apedeutas tautológicos de sempre que ainda conseguem encontrar um paradoxo entre igualdade social e liberdades políticas e que não percebem que o mundo mudou e o quanto, para o bem e para o mal, essas mudanças influenciam a todos nós. São os retrógrados contumazes, avessos aos costumes hodiernos, que devem mais uma vez, quando esse artigo for publicado, me atirar à balda de ser um defensor dos (SIC) “interesses do imperialismo estaduniense, que recebe gorjetas para escrever a favor da direita golpista que quer derrubar Chávez ...”, etc, etc, etc.

Vejamos os arquétipos da mini-série, facilmente encontrados em nossa realidade, egressos de 68 – o ano que teima em não terminar e que foi pródigo em acontecimentos, mas pobre de resultados políticos para as gerações seguintes.

Temos o comunista ortodoxo que lida com seus filhos - chamados Rosa (Luxemburgo) e Luiz Carlos (Prestes) - como se estivesse em uma reunião do partido a qual pertencia. Ele vê seus rebentos como presas fáceis do capitalismo que os corrompeu a base de Coca-Cola e Rock 'n' roll. Ele foi torturado nas dependências do DOI-CODI durante a ditadura, mas não parece ter sentido dores, não demonstra ressentimentos para com seus algozes (parece achar natural o que fizeram como se pensasse fazer o mesmo caso chegasse ao poder). Muito menos aceita que cometeu erros e mantém, com inquebrantável certeza, o ódio de classe contra a burguesia “sem valores morais”. Comodamente, debita toda a problemática da humanidade nas costas do imperialismo norte-americano e crê que as ditaduras totalitárias socialistas eram verdadeiros paraísos na terra.

Ele é o supra-sumo do autoritarismo. Quer proibir seu filho de assistir uma corrida de Fórmula I que (SIC) “representa o poder das empresas automobilísticas”. Ridiculamente, canta a Internacional Socialista por que vai encontrar sua ex-esposa de quem ainda gosta – não seria melhor uma canção de amor?! Ele até consegue conviver com a derrota imposta pela ditadura e com os fracassos da vida profissional e familiar. Mas, assistir pela televisão ao povo alemão, entre o delírio e a histeria, derrubando o muro de Berlim, fazendo soçobrar sua doce utopia, foi insuportável! Ele acompanha tudo incrédulo, depois cai em um choro compulsivo e até adoece. Ele sempre esteve pronto para ver suas idéias triunfarem, não para vê-las ruir de forma tão dura, feito castelos de areia.

Vendo a cena, lembrei-me que presenciei (em 89) um antigo militante do PCB, já falecido, chorando ao ver, pela TV, os operários do Estaleiro Guindanski, em Varsóvia na Polônia, derrubando uma estatua de Lênin. O velho Maia, como o chamava-mos, chorava a dor de ver tudo aquilo pelo o quê acreditou e lutou uma vida inteira sendo, literalmente, derrubado pela classe operária que deveria cultuar a imagem do líder revolucionário. São os paradoxos de um mundo pós-guerra fria, globalizado, que devemos enfrentar e não colocá-las sob o manto protetor da ideologia.

Temos, também, aquele que é convicto que “travou o bom combate”. Que é politicamente correto, defensor da ecologia, e que como professor de uma universidade pública “contribui para a formação de uma nova geração de revolucionários”. Ele, com seu cabelo grande, se mostra nostálgico do movimento hippie e pensa saber a fórmula para “o Brasil virar um país justo“. Também chama seus filhos pelo nome de seus heróis - Chico (Buarque), (Maria) Bethânia, (Gilberto) Gil e Caetano (Veloso). Mas, ele tem o hábito de transformar suas alunas em amantes e mente para a sua família como só a burguesia, que ele diz combater, sabe fazer. Aos pouco, vai aceitando as benesses do capitalismo não sem elaborar um belo discurso para tentar justificar o injustificável. Esse, dificilmente mudará independente da ideologia que tiver.

Temos aquele ex-militante mais folclórico que se recusa a deixar de viver em 68 – sempre prontos a sair por aí, com uma mochila às costas, no melhor estilo flower-power. E, claro, tem aquele que se acha vitorioso por causa da conquista da Lei da Anistia.

E temos, ainda, a ala dos desiludidos. A ex-militante que sofre pelas perdas e pelas torturas sofridas e, como sempre precisou de um dogma para viver, virou esotérica e passa seus dias fazendo o mapa astral de quem não acredita mais em nada. Essa personagem tem uma função importantíssima na trama, pois a sua forma de lidar com o trauma das sevícias sofridas nos faz lembrar que o nosso passivo autoritário não foi ainda resolvido. Não esqueçamos que os arquivos do antigo SNI continuam praticamente intocados e que os torturadores foram, assim como os militantes, anistiados pela Lei da Anistia de 1979.

Enfim, desfilam pela mini-série, e pelo nosso entorno, os sobreviventes de 68.
O que diriam eles se 68 fosse apenas parte do processo histórico do qual somos resultado?

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