terça-feira, 7 de julho de 2009

Justiça para todos os torturadores

Dallari foi de uma precisão cirúrgica neste artigo, em poucas linhas disse tudo o que é efetivamente possível ser dito sobre a necessária punição dos torturadores da ditadura militar. Sem rodeios e nem tergiversações.


Incrível o paradoxo tupiniquim - condena o golpe em Honduras e o desrespeito aos direitos humanos, mas se nega a punir aqueles que a serviço do Estado torturaram, mataram e ocultaram corpos de opositores ao Regime Militar. Interessante, Honduras virará ré no Tribunal da OEA e o Brasil já responde neste mesmo tribunal por se recusar a limpar seu passado autoritário.

Somos mesmo repúblicas bananeiras na América Latina.




Justiça para todos os torturadores
Dalmo Dallari (Jornal do Brasil- 22 de Junho de 2009).


RIO - Há muito tempo a punição de criminosos deixou de ser concebida como um ato de vingança da sociedade, passando a ser reconhecida como exigência da Justiça, que deve ser efetivada pelos meios legais, assegurando-se aos acusados a plenitude do direito de defesa e impondo-se aos culpados a pena justa, de modo que seja preservada sua dignidade humana. Além de configurar um ato de Justiça, a punição dos criminosos tem também um efeito exemplar, influindo para desencorajar a prática de novos crimes. Isso foi ressaltado com grande ênfase por Cesare Beccaria, notável jurista italiano do século 18, em sua obra consagrada Dos delitos e das penas. Opondo-se à excessiva crueldade das penas, mas reconhecendo que estas são necessárias, pondera Beccaria que “um dos maiores freios ao delito não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade”, acrescentando que a certeza da punição, ainda que por meio de uma pena mais branda, causa maior efeito do que a previsão de pena mais severa, se esta for acompanhada da certeza ou da esperança de que não será aplicada.


É necessário e oportuno que tudo isso seja lembrado neste momento em que, tentando criar uma imagem favorável para sua biografia póstuma, um dos mais ativos torturadores a serviço da ditadura no Brasil, o famigerado major Curió, decidiu abrir uma parte de seus arquivos para o jornal O Estado de S. Paulo. Pelo que já foi revelado, praticava-se a tortura com o conhecimento e até mesmo por exigência dos mais altos líderes do governo ditatorial, inclusive ocupantes da Presidência da República. E subordinados que agiam profissionalmente, recebendo dinheiro público em troca da prática dos mais atrozes atos de tortura, que muitas vezes produziram a morte das vítimas, não tinham qualquer inspiração política, como confessa o major Curió. Isso deixa mais do que evidente que a eles não se aplica a Lei de Anistia, pois nem direta nem indiretamente a tortura que praticaram tem alguma conexão com crime político.


É muito importante essa documentação que agora vem a público, acompanhada das confissões do major Curió, pois mostra a realidade da tortura como crime comum praticado contra a humanidade. Em defesa da impunidade dos torturadores tem-se alegado que eles foram anistiados pela Lei da Anistia, a Lei nº 6.683, de 1979, segundo a qual ficaram anistiados os que cometerem crimes políticos ou conexos, ou seja, decorrentes daqueles. Quanto a esse ponto, basta lembrar que em vários tratados e convenções internacionais assinados pelo Brasil desde 1945, como a Carta da ONU de 1945 e as Convenções de Genebra de 1949, assim como na jurisprudência uniforme dos tribunais internacionais, a tortura foi definida como crime contra a humanidade e, por isso, imprescritível. A alegação de que os torturadores foram beneficiados pela Lei de Anistia, porque cometeram crimes políticos, é absolutamente inconsistente, pois os torturadores que atuavam como servidores militares ou civis eram agentes pagos pelo Estado, sendo, portanto, profissionais e não membros de movimentos políticos atuando
nessa condição. Praticavam a tortura porque eram pagos para isso ou porque buscavam alguma vantagem pessoal e requintavam nas violências, chegando até à prática de homicídio, por serem sádicos ou porque buscavam agradar os superiores hierárquicos eliminando os seus opositores. Longe de configurar retaliação, como demagogicamente se tem dito, a punição dos torturadores será, essencialmente, um ato de Justiça, que deve ser praticado para desencorajar novas aventuras degradantes para a história do povo brasileiro.

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