quarta-feira, 2 de junho de 2010

Gargalos da lulocracia – Parte I.

Após ungir Dilma Rousseff candidata e compará-la a Nelson Mandela; depois das metáforas futebolísticas e de louvar o modo como Delfim Neto conduzia a economia na ditadura militar, além de elogiar o governo Geisel; após aliar-se com Sarney, Collor e et caterva, de afirmar que desconhecia o mensalão e que nunca foi de esquerda, o que mais falta a Lula dizer e fazer?


Ele tem uma popularidade sempre em alta, nunca em queda. Sua administração é muito bem avaliada; veja-se que na pesquisa CNT/SENSUS de 17/05 passado, 76,1% dos entrevistados aprovaram seu governo. E não desconsideremos que estamos no último ano do segundo mandato, onde certa exaustão de governantes e governados é natural. E persiste a aclamação da opinião pública internacional em torno da pessoa do presidente. Para muitos, ele ainda “é o cara”. Pessoalmente, desconfio que Obama nunca pensou isso, ironizava quando fez a graciosa afirmação.


No entanto, Lula segue ignorando as regras da boa convivência, agindo por ter plena convicção de que “nunca na história desse país, um presidente ...”. Como ele extrapola o bom senso com suas peripécias mundo afora, temo que chegue a negar a existência do Holocausto, para agradar o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, e abjurar crimes históricos, cometidos em nome do socialismo, para acariciar os irmãos Castro, Hugo Chávez e sua camarilha bolivariana.


Lula não entende que, quando fala, expressa, além de sua opinião, a de um Chefe de Estado representante de princípios, opiniões e interesses de uma nação. Como afirmou Eliane Cantanhêde, na Folha de São Paulo, “(...) coloca sua popularidade a favor de más ideias e de péssimos atos”.


Sobre a problemática dos presos políticos de Cuba, nosso presidente teve uma postura oportunista. Alegando que é preciso “respeitar a determinação da Justiça e do governo cubanos de deter as pessoas em função da legislação de Cuba”, ele recorreu a um tipo de formalismo útil apenas a quem se pretende neutro. Pior, foi desdenhar dos que faziam greve de fome, comparando-os a criminosos comuns do Brasil. Mais, ter-se deixado filmar e fotografar, entre sorrisos e abraços, ao lado de Fidel e Raúl Castro no dia do falecimento do dissidente Orlando Zapata (que fazia greve de fome) denotou glacial insensibilidade.


E para aumentar nossa vergonha e irritação, ainda teve a estulta “justificativa” de Marco Aurélio Garcia, assessor de política externa da presidência da República, que disse: “violações dos direitos do homem existem por todo lado no mundo“. Idêntica racionalização faz o corrupto que diz roubar porque todos assim o fazem. Se todos são iguais na violação dos direitos humanos, então ninguém critica ninguém. Certo? Absolutamente errado, pois assim sólidas democracias vão ser niveladas ao nível de anacrônicas ditaduras.


Tudo isso revela um posicionamento. Do contrário, Lula teria recebido um grupo de dissidentes que pretendiam entregar-lhe um documento e obter uma manifestação de simpatia às mudanças democráticas no regime cubano. Foi como se Lula quisesse revelar ao mundo, e a nós brasileiros, seus pendores pretorianos – parecia querer avisar ou lembrar algo. Não creio que ele faria tamanha asneira se não tivesse um propósito bem estabelecido. Não combina com seu astuto perfil de político e ex-sindicalista.


Para se ter uma idéia do ultraje, a Anistia Internacional acusou o silêncio brasileiro em relação à forma contumaz como o governo cubano desrespeita os direitos de seus dissidentes. O comunicado dizia que “(...) direitos humanos são universais e indivisíveis. Se o Brasil quer ter um papel maior no cenário internacional, deveria mostrar um nível maior de integridade em relação aos direitos humanos”. Já Kerrie Howard, vice-diretora da Anistia para as Américas, vaticinou que “não se pode criticar a questão dos direitos humanos apenas quando é conveniente”. Referia-se ao fato de que a diplomacia brasileira tem-se calado, em fóruns internacionais, sobre violações aos direitos humanos promovidas pelos governos do Irã, Coréia do Norte, Sudão e, claro, Cuba.


E não esqueçamos que o Brasil ainda sentará no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos por teimar em descumprir as recomendações, de 2008, de punir os responsáveis pelos casos de prisão indevida, tortura e desaparecimento durante a ditadura militar e por se recusar a rever a Lei da Anistia. O Brasil pode ser condenado, internacionalmente, a não mais usar a Lei da Anistia como argumento para não punir acusados de crimes contra a humanidade. Os governos do Chile e Peru abandonaram suas leis de anistia depois de serem condenados na Corte de Costa Rica.


Aliás, é de se perguntar em que o Brasil se fia para não rever (ou passar a limpo) seu passado autoritário, pois países com situações democráticas tão frágeis quanto a nossa deram passos importantes neste sentido. Veja-se que o Peru condenou seu ex-presidente, Alberto Fujimori, por crimes contra a humanidade e que a Argentina sentenciou seu último presidente militar, Reynaldo Bignone, por sequestro e tortura. Já no Camboja, o camarada Duch, líder do sanguinário Khmer Vermelho, teve que responder por crimes contra a humanidade, cometidos há mais de 30 anos.


Como demonstra o último relatório da Anistia Internacional, divulgado dias atrás em Londres, quando o tema é direitos humanos o Brasil é reconhecido pela pertinácia como não os respeita. O relatório, que tem 2009 como ano-base, traz um rol sem fim de vítimas de tortura e de execuções por policiais, de chacinas e linchamentos, superlotação de presídios, populações faveladas à mercê do tráfico e/ou de milícias, assassinatos nas cidades e trabalho escravo no campo. São ocorrências degradantes, desumanas, cruéis e que devem envergonhar os que valorizam os direitos humanos. A Anistia citou, ainda, dois casos acontecidos já em 2010 como emblemáticos. Um, os casos dos motoboys espancados até a morte por PMs paulistas. Outro, o julgamento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por 7 a 2 que não cabe alterar a Lei da Anistia para julgar os torturadores da ditadura.


O ministro Carlos Ayres Britto (um dos dois votos vencidos) disse que: “diante do monstro que é o torturador, não se pode ter condescendência”. O que a Anistia pondera é que o Brasil é sim complacente para com o torturador; que transige para com aqueles que cometeram crimes contra a humanidade, pior, anui que eles continuem livremente a atuar em órgãos públicos. O mais grave foi que o STF referendou a vigência da Lei da Anistia desconsiderando o fato de que ela é incompatível com a Constituição Federal. Ao conciliar Estado democrático de direito e tortura, conseguiu uma proeza digna de ser registrada nos anais do direito internacional.


Demonstrativo, ainda, desse estado de coisas é a forma como o governo tratou o 3º Plano Nacional dos Direitos Humanos ao lançá-lo com temas complexos e defendendo a aprovação de 27 leis. Lula mandou recolhe-lo para que fosse alterado. O estorvo foi que o Plano previa a criação da Comissão Nacional da Verdade (existente em países da América Latina que, como o Brasil, enfrentaram ditaduras) para investigar atos cometidos durante o regime militar. A caserna estrilou, os comandantes das Forças Armadas ameaçaram demissão coletiva e o Ministro da Defesa, Nelson Jobim, bastante solícito aos seus subordinados, pediu mudanças - no que foi prontamente atendido. Interessa assinalar a presteza com que os governos atendem solicitações do alto comando das Forças Armadas, prova que o fim da ditadura não acabou com as prerrogativas que os militares foram adquirindo ao longo do tempo.


O alarido dos quartéis girava em torno da frase que justificava a criação da tal Comissão. A versão original diz que ela deve apurar violações de direitos humanos “praticadas no contexto da repressão política”. Uma nova versão traz que investigará atos “praticadas no contexto de conflitos políticos”. Por quê? Para que a Comissão possa investigar além de militares, militantes da esquerda que lutaram contra a ditadura. Puro revanchismo, pois o ataque ainda parece ser a melhor defesa.


Lula pediu publicamente a Paulo Vannuchi, secretário de Direitos Humanos, para não centrar-se nas questões da ditadura. Também interessa pontuar como o governo destrata os problemas advindos de nosso passado autoritário. E pediu uma solução negociada entre as partes, de um lado Nelson Jobim que defende o esquecimento, via manutenção da Lei da Anistia, e de outro Vannuchi, querendo lembrar, justamente através da revisão da Lei da Anistia. Lula deveria escolher um lado, enquadrá-lo, e dar plenos poderes para o outro agir, no entanto, prefere contemporizar – quer ficar bem com todos, termina por desagradar a ambos com sua ambivalência contumaz.


Continua em Breve...

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