ARTIGO DO DIA
Política
GILBERGUES SANTOS
GILBERGUES SANTOS
Especial para o UOL - 22/08/201
Arcabouço jurídico de um Estado pode afiançar ou
cercear a lei que serve tanto às democracias como às ditaduras
Em 2009, as Forças Armadas de Honduras
efetivaram um clássico golpe de Estado sacando do poder o presidente
democraticamente eleito Manuel Zelaya sob acusação de que ele poria, nas
eleições daquele ano, um item plebiscitário para que os hondurenhos opinassem
sobre a inclusão da reeleição na Constituição Federal. O golpe foi ilegítimo e
legal. É que a Constituição de Honduras, tal qual a brasileira, possui dispositivo
que dá as Forças Armadas prerrogativas para garantir a lei e a ordem. O que não
se questionou é se a ordem político-social hondurenha estava mesmo ameaçada
pelo fato de Zelaya querer se reeleger.
Em 2012, o presidente paraguaio
Fernando Lugo, eleito democraticamente, sofreu um impeachment em apenas
48 horas. A maioria conservadora
do Congresso Nacional golpeou Lugo se valendo de uma crise politica gerada pelo
confronto entre policiais e camponeses num ato de reintegração de posse de uma
fazenda. O processo cerceou o amplo direito de defesa de Lugo. A Comissão
Interamericana de Direitos Humanos condenou a rapidez do julgamento e a falta
de concretude das acusações. O golpe foi dado com a contribuição da Suprema
Corte Eleitoral, do Partido Colorado, das Forças Armadas e do vice-presidente
Federico Franco que assumiu o cargo.
Coincidências com um
enorme país fronteiriço ao Paraguai nunca foram, nem devem ser, mera
coincidência. Não na América Latina que segue precisando de ridículos tiranos
como bem disse aquele "antigo compositor baiano".
Vimos agora um golpe de Estado na Turquia. Mesmo fracassado, ele reforça a
noção de que uma cultura politica autoritária viceja mundo afora e contesta a
hegemonia da democracia. Essa aventura golpista custou a vida de centenas de
pessoas e mais de três mil foram presas. Li que os turcos ficaram traumatizados
com tanques de guerra atropelando as vias públicas. Mas, como nós, eles estão acostumados
com golpes, pois tiveram cinco ao longo de 56 anos. O presidente Recep Erdogan
proclamou que a democracia havia saído vitoriosa. Vitória de Pirro essa, pois
um sistema democrático só se consolida quando seus procedimentos e instituições
funcionam livres de ameaças golpistas. Cada tentativa de golpe intensifica a
ideia de que sistemas de força são mais eficientes para lidar com crises
econômicas e politicas.
O prêmio Nobel Adolfo Pérez Esquivel aqui
esteve e se assustou com tantos brasileiros defendendo golpes e ditaduras. Ele
lembrou Honduras e Paraguai, que afastaram presidentes através do ordenamento
jurídico e tendo o Parlamento como protagonista da ação golpista. Temos uma
nova modalidade de golpe de Estado que se respalda nos entulhos autoritários
que as constituições trazem. Continua-se depondo presidentes eleitos, mas agora
é a elite político-partidária quem dá cabo das ações golpistas, contando ou não
com o apoio das Forças Armadas. Senão, vejamos o atual caso brasileiro.
No passado, o
totalitarismo desafiou a democracia que espalhou suas ideias numa primeira onda
de democratização a partir de 1945. Os rigores da Guerra Fria fizeram surgir
uma segunda onda de autoritarismo militarizado na década de 1960. No início dos
anos 1980 ele caiu em desuso e uma terceira onda de redemocratização se fez
sentir em que pese países como Brasil, Honduras e Paraguai terem se tornado
democráticos sem reverem seus passados autoritários. E agora, o que temos?
Seria uma quarta onda de reversos golpistas comandados por Parlamentos e
Judiciários? Temos um padrão ou esses exemplos são pontos fora da curva?
Sistemas políticos que
mesclam elementos autoritários com procedimentos democráticos são cada vez mais
comuns. Na "Primavera Árabe", as revoltas populares contra governos
queriam deter anacrônicos ditadores, mas não se falava em democracia. Defendia-se
eleições livres, mas se fechava os olhos para liberdade de culto e expressão.
Lutava-se pelo fim da opressão estatal, mas as mulheres não podiam participar
das manifestações.
A democracia, como
sistema e cultura política, é cara ao Ocidente, onde as revoluções burguesas
vingaram e as ditaduras totalitárias serviram como contraste. A democracia tem
valor universal, do contrário a luta pelos direitos humanos não se daria no
Irã, por exemplo. Cultura não é variável independente, com papel central no
mapeamento de fenômenos. Ela não explica e nem justifica tudo. Se assim fosse,
a democracia seria inviável, inclusive na Europa. O arcabouço jurídico de um
Estado pode afiançar ou cercear a lei que serve tanto às democracias como às
ditaduras. Essas são as questões que podem iluminar o debate sobre em que
sistema politico é melhor viver.
Ontologicamente, temos
Alexis de Tocqueville ("A democracia na América"), para o qual a
democracia é o somatório (em doses iguais e sem hierarquias) de liberdade e
igualdade. Realisticamente, serve a descrição minimalista procedural do
cientista político Scott Mainwaring que, em "Classificando Regimes
Políticos na América Latina", diz que democracia é o regime que (1)
promove eleições competitivas, livres e limpas; (2) que pressupõe uma cidadania
adulta e abrangente; (3) que protege liberdades civis e direitos políticos; (4)
onde governos eleitos de fato governam e militares são controlados pelos civis.
Proponho um exercício
simples. Verifiquemos se esses quatro itens são de fato praticados em nossa
sociedade. Se a resposta for sim, ótimo!, vivemos em uma democracia minimamente
consolidada. Mas, se a resposta for não, sugiro que comecemos desde já a ler
tudo que pudermos sobre ditaduras.
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O texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
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