Em 1º de junho de 1950, Carlos Lacerda publicava editorial em seu jornal
“A Tribuna da Imprensa” que reputo como o suprassumo da mentalidade
antidemocrática. Dizia “o corvo”: "O
Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não
deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à
revolução para impedi-lo de governar”. Inclementemente simples.
No Brasil era assim: onde se falasse em revolução logo se via golpe,
assalto ao poder, intervenção militar. Lacerda liderava a União Democrática
Nacional (UDN), uma espécie de PSDB só que bem mais conservadora e autoritária.
Com seu libelo golpista, Lacerda expressava a impaciência de setores elitizados
cansados de verem seus interesses represados pelo nacional-desenvolvimentismo.
Fruto de uma sociedade desacostumada aos ritos democráticos, Lacerda pedia
golpe ao invés de pedir votos para UDN.
O governo Vargas foi tumultuado, com a oposição implorando que os
militares tomassem o poder, e Lacerda teve o desfecho autoritário que tanto
ansiava em 1964. As ilações entre este período e o momento político que vivemos
são inevitáveis. Hoje, como no passado, muitos acreditam que a força é solução
única para nossas crises institucionais, pois nossa democracia representativa ruiu
de vez. Fôssemos uma sociedade que cresse nos valores da democracia e não
veríamos vivandeiras rondavam os quartéis.
Vivandeira vem do francês “vivandière” e significava (na Guerra de
Canudos, por exemplo) a mulher que seguia a tropa levando mantimentos para os
soldados. O jornalista Elio Gaspari, numa coluna para a Folha de São Paulo em
janeiro de 2010, mostrou que o primeiro ditador/presidente do regime militar,
marechal Humberto Castello Branco, chamava de vivandeiras os políticos que iam
aos quartéis conspirar com a oficialidade. Dizia Castello: “São os que, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bulir com
os granadeiros e provocar extravagâncias ao Poder Militar”. Se déssemos o
real valor que a democracia tem, vivandeiras seriam coisas do passado e não
veríamos brasileiros vestidos de verde-e-amarelo (por cima do preto fascista
que cultuam) pedindo aos militares para intervirem na ordem política e social
do país. De fato, algo em torno de 30% dos brasileiros trocaria nossa frágil
democracia por um regime de força.
Este cenário de crise se agravou por causa da corrupção mesmo que esta não
seja causa e nem consequência daquela. Sim, temos uma moralidade seletiva, onde
se escolhe como e porque ser ou não desonesto e onde políticos não são criticados
pelo envolvimento em negócios escusos, mas por ter se deixado flagrar. Não
indicaria, claro, as pedaladas fiscais do governo Dilma como fato gerador da
crise, pois houve quem se gabasse, antes de 2014, de pedalar para não arrombar
as contas. Até os pombos da Praça dos Três Poderes em Brasília sabem que
pedaladas se tornaram motivo para impeachment como estratégia de quem não
conseguiu chegar ao poder pelas urnas.
Estranho foi ver atores políticos e judiciais buscando a porta lateral do
golpismo, calcados na mentalidade udenista, onde crises institucionais se
resolvem com saídas de força. Não se buscou o golpismo tradicional, ativado
pelas Forças Armadas, mas um ato que segue as regras da democracia. Podemos conviver
com tamanho paradoxo? Ainda teremos que analisar a mãe de todas as contradições
desse momento que é se usar os ritos da democracia, como a liberdade de
expressão, para pedir o seu fim.
Em democracias consolidadas procedimento democrático é a água que jamais
se mistura com o óleo da mentalidade autoritária. Mas, com a criatividade que
temos para misturar água e óleo, exercitamos nossa mentalidade pretoriana sem
ter que rasgar a Constituição. Tal qual em tempos idos vivandeiras seguem
batendo à porta da caserna! Assim como se fez com Fernando Collor, na vã
tentativa de mantê-lo no poder, e com Itamar Franco, para garantir que
assumiria a presidência no impeachment de 1992, as Forças Armadas teriam sido
sondadas para a destituição de Dilma Rousseff? O senador José Serra (PSDB) se
referiu, entre os meses de julho e setembro de 2015, sobre a possibilidade de a
crise descambar para uma intervenção militar ao comparar o momento com o ano de
1964. Serra, vivandeira de quatro costados, batia à porta do quartel. Parecia
querer lembrar aos militares que seria hora deles tomarem as rédeas do poder.
A prova disso foi que o general do Exército Eduardo Villas Bôas teve que
esclarecer o posicionamento da instituição que comanda. Numa entrevista à Folha
de São Paulo (14/10/2015), negou a possibilidade de uma intervenção militar,
mas admitiu que uma “crise social afetaria
a estabilidade do país e isso diria respeito às Forças Armadas”. Ele chegou
mesmo a dizer que: “E aí, nesse contexto,
nós nos preocupamos porque passa a nos dizer respeito diretamente”.
Se a crise afeta a estabilidade do país e diz respeito às Forças Armadas,
o que fazer então? Intervir na ordem social e política? Ou deixar que os civis
ponham ordem no frege que eles mesmos causaram? Na entrevista, o Gal. Villas
Bôas diz, numa provável resposta ao senador Serra, que é a “sociedade que tem que aprender com seus erros e ter consciência que
cabe a ela solucionar esses problemas”. Mas, o general lembra que “as Forças Armadas têm que estar em
condições de atender às demandas da população”. Ou seja, o Exército não
pretende intervir para corrigir erros da sociedade, mas segue atento as
demandas intervencionistas da população.
Nunca é demais lembrar que parte da população brasileira se mostra
simpática a volta dos militares ao poder central do país, segundo pesquisas do
Datafolha e do Ibope realizadas entre 2015 e 2016. É preciso atentar para os
perigos de se clamar por intervencionismo. Nossa história nos exemplifica que
não raras vezes vivandeiras terminaram sendo perseguidas pelos que tomaram o
poder a força – Carlos Lacerda, a Igreja Católica e a classe média brasileiras
que o digam.
O ímpeto golpista das manifestações de rua arrefeceu, mas o ativismo
autoritário nas redes sociais segue firme, forte, bem articulado, mesmo que não
disfarce uma contundente estupidez quando trata de nossa história política.
Vejo sempre pessoas citando casos de corrupção para logo em seguida pedir aos
militares para nos salvarem (SIC) “do horror de viver numa democracia”.
Se é verdade que os militares não estão interessados em fazer cumprir o
artigo 142 da Constituição, é bem verdade, também, que parte da população
cansou de viver sob os dilemas da democracia. O problema é que muitos não
viveram os tempos obscuros da ditadura e se recusam a saber o que acontecia com
os que se opunham ao regime militar. Parte dos brasileiros querem o bônus da
ordem social e política, mas esquecem do ônus histórico que essa mesma ordem
nos inflige.
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