sábado, 4 de abril de 2020

O Golpe de Bonaparte XVII

À pergunta se vamos ou não ter golpe, responderia sim e não, pois podemos ter mais um golpe de Estado a qualquer hora e podemos nem mais precisar de um, posto que há muito abrimos mão da democracia que para nós foi “sempre um lamentável mal entendido”, como diria Sérgio Buarque de Holanda. Discordo dos que dizem ser  improvável, mas não impossível que tenhamos um golpe em 2020, pois numa república bananeira, empestada de vírus e vermes, golpes são prováveis e possíveis como o sol parido a cada novo dia.

Em 1992, quando se soube que Collor sofreria o impeachment, a pergunta que se fazia era se teríamos um golpe. Só depois é que se pensava se Itamar Franco, o vice, assumiria. Às vésperas da posse de Lula para seu 1º mandato era corrente a dúvida de se os militares o deixariam subir a rampa do Planalto. Nos governos de Dilma Rousseff a pergunta não era se os militares a deporiam, mas quando. E vejam que nem falo do ritual golpista, no século XX, regiamente cumprido com ou sem eleições. Fôssemos uma república assentada nos princípios do federalismo e da democracia e não faríamos essas perguntas.

Quando um inimigo da democracia, adulador de torturadores, ocupa o Palácio do Planalto e, ensandecido, tenta instituir sua própria ditadura, cabe mesmo perguntar se teremos um golpe. Há uns dias um bajulante José Luiz Datena perguntou a um cáustico Bolsonaro se 
ele pretendia dar um golpe e fechar o país. A resposta foi quase um sim: “Quem quer dar golpe jamais vai falar que quer dar”. Se vivemos em uma democracia porque se pergunta tanto sobre golpes? O presidente falastrão só não deu um golpe de Estado ainda porque os militares parecem só aceitar subir nos tanques se for para depô-lo.

Postei no Twitter, em tom de pilhéria, que temos que declarar Bolsonaro incapacitado e tirá-lo do governo antes que babe, rasgue dinheiro e se auto nomeie Napoleão Bonaparte XVII. Pelo andar do tanque de guerra, digo da carruagem, o deboche pode ser real, pois segundo a jornalista Thaís Oyama, autora do livro Tormenta - O governo Bolsonaro: crises, intrigas e segredos, o antipresidente está à beira de um ataque de nervos. Oyama diz que ele chega a chorar no expediente, afirmando que mundo está contra ele.

A Folha de São Paulo pediu a psicanalistas uma análise do atormentado presidente e o resultado é apavorante. Os especialistas apontam, numa personalidade teatral e histérica, questões como insegurança, lógica paranoica, messiânica e delirante, narcisismo desmedido, agressividade, além do sentimento de onipotência e da ideia do “eu sozinho” contra o mundo. Assim temos um governante “psicopatologicamente acometido” e eu acrescentaria a esse “diagnóstico” uma perversidade de chefe de campo de concentração. Isso tudo agrava a situação política e soma mais um argumento ao fato de que Bolsonaro não reúne mais as condições objetivas para seguir na presidência.

Com os feitos e defeitos do presidentizinho (para quem coronavirus é uma “gripezinha”), quem neste país réprobo já não perguntou aonde andam os militares que não dão um golpe e botam essa delinquente da lei, da ordem e do bom senso na rua? O caro leitor se assustou em desejar um golpe de Estado para que, finalmente, nos livremos do fascista celerado e seus filhos ardilosos? Desculpe-me ser o portador da má notícia, mas é que, para nós, querer golpe é como o desejo de comer chocolate, todo mundo tem ou vai ter.

Sim, este facínora, que não poderia ser eleito, já deveria ter sido chutado da presidência. O conglomerado golpista de sempre não pestanejou em depor João Goulart e Dilma Rousseff do poder, por que, agora, se revestiria de tantos pruridos aparentemente democráticos? O que ainda parece sustentar o caviloso na presidência é o fato de Mourão não inspirar credibilidades na caserna mesmo com essa moderação que até os pombos candangos sabem ser falsa. Mourão é mesmo da tradição da linha dura do Exército. Quem não lembra dele em 2015 pedindo intervenção militar para depor Dilma? Sem contar que o alto comando das Forças Armadas, que gosta do poder mas detesta governar, não quer assumir o país - é que o Exército ainda lida com o ônus de ter governado nos 21 anos da ditadura.

Na Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964, os chefes das Forças Armadas dizem que cumprem “sua missão constitucional e estão submetidos ao regramento democrático”. Paradoxalmente, ao tempo em que fazem lembrar de um golpe de Estado, falam em defender a democracia. Os militares dão uma no cravo, ao se colocarem como guardiões da democracia que nunca tivemos, e outra na ferradura, quando se põem a postos para qualquer eventualidade que passe ao largo dos procedimentos democráticos.

Na verdade, os militares preferem mesmo é malhar a ferradura, pois quando o inominável presidente convocou seus apoiadores para irem às ruas, no 15 de março, pedirem o fechamento do Congresso Nacional, o Clube Militar do Exército publicou um comunicado anunciando o apoio da instituição ao ato, numa clara demonstração que quando os militares se mobilizam politicamente não é para defender a democracia. A Mafalda do Quino já diria que não se salva a democracia com golpes.

Concordo com Priscila Perazzo, doutora em História Social pela USP, que diz que os “ideais autoritários refloresceram (...) a população legitima um governo forte, armado, opressor, de ideias únicas impostas. A ditadura já está na população. Agora só falta ser implantada no governo”. A prova disso é que desde 2013 não há uma única manifestação, dessas onde se usa a liberdade de expressão para pedir o fim da democracia, onde não se queira intervenções militares e a instituição de uma ditadura. No surto antidemocrático do 15 de março ficou evidente que parte da sociedade até aceita ficar sem o seu Hitler de meia tigela, mas não abre mão de um retorno a uma ditadura militar.

O conglomerado golpista receia que numa possível renúncia/deposição do aviltador mor da república, a esquerda possa assumir após uma futura eleição. Entre o Bozo surtado e Lula fazendo reformas, para diminuir a desigualdade social, com quem você acha que a elite fica? A direita se pergunta com que roupa irá na próxima eleição, se é que teremos uma, pois seus quadros foram todos detonados, Aécio Neves que o diga. Assim o conglomerado irá mesmo é de golpe e ditadura, afinal é para isso mesmo que ele existe.

Finalizo esta coluna lendo matéria da Revista FORUM dando conta que o La Reppublica fala em golpe branco no Brasil e confirma Braga Netto como “presidente operacional” no lugar de Bolsonaro. O jornal italiano fala de um “suposto golpe de estado” e que o chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, seria o “presidente operacional” após acordo entre ministros, comandantes militares e o próprio Bolsonaro para que o mesmo se afaste das decisões sobre tudo que se relacione a pandemia do Coronavírus. Braga Netto seria uma espécie de primeiro ministro militarizado. Duvido que Bolsonaro tenha aceitado de bom grado passar adiante suas funções, se o fez foi premido por algum tipo de força exercida sobre ele, ou seja, ele foi golpeado! Presidente Operacional seria o eufemismo de quem vai de fato, não de direito, desempenhar as funções de governante.


Segundo o La Reppublica, ele “terá a direção e centralização de toda a administração do governo enquanto durar a crise do coronavírus com o título de Chefe do Estado Maior do Planalto”. Dito de outra forma, Braga Netto seria uma espécie de presidente de uma junta militarizada que governaria a partir de uma intervenção silenciosa. Neste caso, Bolsonaro figuraria num misto de rainha da Inglaterra com bobo da corte.
A se confirmar a informação, minha resposta para a pergunta se teríamos ou não um golpe está dada. Os militares parecem ter encontrado a solução para o mega impasse gerado (1) pela recusa de Bolsonaro em renunciar, diante do fato de que ele não tem mais condições legais nem legitimidade para governar; (2) pelo fato de Mourão não ser bem visto e nem aceito; (3) pelas impossibilidades de se mover um processo de impeachment neste momento, por causa da crise do coronavirus; (4) por causa de o alto comando das Forças Armadas não querer mais um Golpe de Estado em seu currículo intervencionista. Um “golpe branco” solucionaria todo esse impasse, mas só por enquanto. A médio e longo prazo ele só serve para que fiquemos cada vez mais longe da democracia.



PS: A cientista política Anna Lührmann é vice-diretora do Instituto de Variações da Democracia da Universidade de Gotemburgo, na Suécia. O V-DEM afere a qualidade da democracia no mundo. À Folha de São Paulo, Lührmann diz que a crise do coronavírus vai acelerar onda autoritária no mundo. Suas conclusões são pavorosas para quem gosta da liberdade. O último levantamento do V-DEM mostra que em 179 países, 87 são democráticos e 92 são. A cientista política fala que num quadro de crise econômica, com recessão, “pode aumentar o apoio a líderes autoritários e populistas”. Ela cita Hungria e Polônia, onde governos inimigos da democracia, porém eleitos, aceleram a onda de autoritarismo se valendo do argumento de que é preciso combater o coronavírus. As democracias consolidadas têm instrumentos, como o “Estado de Emergência”, para lidar com crises, catástrofes naturais ou não e pademias. Já as ditaduras e arremedos de democracia se valem desses momentos para acelerar a centralização do poder, a neutralização da oposição e da imprensa, além de lançar mão de coisas como censura.