sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O Brasil e sua festiva democracia rachada

Pirro, general grego, disse ao ganhar a Batalha do Ásculo (279 a.C.) que outra vitória daquela e ele estaria perdido. Referia-se ao alto número de soldados mortos e de não ter mais onde recrutá-los. Assim é a democracia brasileira que venceu, mas não levou, a disputa contra a ditadura. Não é que tenha havido renhida disputa entre os dois sistemas. Houve, isto sim, uma pactuação para que civis, da direita, governassem no lugar dos militares. O “pacto da transição” permitiu que José Sarney, fiel aliado dos militares, se tornasse presidente com a morte de Tancredo Neves, ativo político da “oposição consentida”. O que tivemos, na verdade, foi um processo lento de liberalização que nos levou da ditadura militar para este sistema que mescla entulhos autoritários com procedimentos democráticos.

O tropo entulho autoritário serve para demonstrar os obstáculos deixados em nosso ordenamento jurídico que tanto impediram e impedem o assentamento da democracia como a Lei da Anistia, os Artigos 142 e 144 da Constituição Federal, a Lei de Imprensa de 1967 (só declarada inconstitucional em 2009), a Lei de Segurança Nacional (editada na ditadura e usada até hoje), o desmonte parcial do aparato repressivo, etc, etc, etc.

Notem que me refiro ao entorno legalista, mas temos os arranjos institucionais que mantiveram privilégios e prerrogativas de militares, juízes e agentes da administração pública, além de nossa evidente cultura política pretoriana. O fato é que o sentido do autoritarismo, o conteúdo ditatorial, ficou entre nós. Mudaram os formalismos, a substância não. O sociólogo guatemalteco, Bernardo Arévalo, especialista nas relações civil-militar e em segurança, diz que: "temos o hardware da democracia e o software do autoritarismo".

Certo, a pior das democracias é sempre melhor do que a mais eficiente das ditaduras, mas atentemos para as fraquesas de nosso sistema democrático, principalmente por ele não ter forças mínimas para impedir que os que o detestam se elejam e governem. Nossa democracia tem seríssimas deficiências afloradas com as muitas manifestações a partir de 2013, com o golpe de Estado de 2016 e as eleições de 2014, 2018 e 2020. Costuma-se dizer que a democracia brasileira está estabilizada. Lêdo engano! De forma desconectada da realidade, afirma-se que eleição é a “festa da democracia”. A propaganda que a justiça eleitoral faz desinforma, não educa, pois quer nos fazer crer que vivemos numa democracia modelar. O Tribunal Superior Eleitoral e a mídia grande insistem na tese que somos uma democracia consolidada por termos muitas eleições. Essa publicidade despolitizada ignora que nosso povo adora uma eleição, mas não presta atenção ao processo posterior quando os que foram escolhidos nas urnas governam e legislam.

Tratar eleições como um grande show mascara o fato de que elas são tão somente o ato pelo qual escolhemos nossos representantes. Por que depois de tantas eleições, com alternância no poder (condição necessária, mesmo que insuficiente das democracias), seguimos tratando esse momento como algo inusitado? Temos eleições a cada dois anos, mas elas são aguardadas como um cometa que nos visita a cada cem anos. A realidade desmente os incautos que proclamam o que estamos bem distantes de sermos.


Devemos nos inquietar com fatos ocorridos já neste século XXI. Reflitamos sobre os casos de violência (física ou não) contra políticos e sobre o comportamento racista, machista/misógino, homofóbico de candidatos e eleitores nessas eleições de 2020. Apesar de que, apenas num próximo artigo relacionarei as questões identitárias, com o conservadorismo da sociedade brasileira e os resultados das eleições 2020. Por enquanto, quero tratar da presença das Forças Armadas nas ruas nos dias das eleições. Se estamos em uma democracia, os votos é que deveriam assegurar as armas, não o contrário.

Nas eleições municipais de 2008 vimos que, no Rio de Janeiro, traficantes e milicianos tabelaram valores a serem pagos por candidatos que desejassem cabalar votos em seus domínios. A mão-de-obra utilizada pelos candidatos teria que ser contratada na própria comunidade para a colocação de faixas, placas e adesivos. Candidatos a vereador, com parcos recursos, pagavam para que moradores (os “gatos placa”), responsáveis pelas placas de candidatos mais ricos, vigiassem também o seu painel. "Gato placa" vem de "gato-net", furto de sinal de TV a cabo, uma variação do "gato", furto de energia elétrica.

Esses “serviços” são “fornecidos” pelos que controlam as comunidades. Na falta de instituições formais eficientes que provenham segurança e assegurem direitos e deveres do cidadão surgem as instituições informais, procedimentos fora do aparelho de Estado que, mediante resultados eficazes, cumprem o papel que deveria ser do próprio Estado.

Como a polícia (militarizada pela ditadura e pela própria Constituição de 1988) não garante segurança nos processos eleitorais, até porque seu envolvimento neles tem sido de outra ordem, convoca-se o Exército pelo entendimento, equivocado, dele ser a única instituição capaz de manter a ordem e a paz social e política. Na época, a declaração do ministro Carlos Ayres Brito, então presidente do TSE, foi de uma sinceridade acachapante. Admitindo a quebra do Estado de Direito, assim justificou a convocação do Exército: "esses grupos querem o poder, se apoderam da coletividade periférica e tentam impor o curral fechado. Se a justiça permitir que atuem livremente, será o mesmo que rendição”.

Como numa guerra, para evitar que a sociedade se renda a um inimigo bem mais poderoso, clama-se pelas Forças Armadas que, sabemos, não tem treinamento adequado para atividades de segurança pública. Alegando a necessidade de se garantir a circulação de candidatos, tropas federais ocuparam várias comunidades da cidade do Rio de Janeiro em várias eleições nas duas primeiras décadas deste século. Para que um procedimento democrático (eleição) pudesse ocorrer foi preciso o uso do poder armado. Um preço nada barato para uma democracia claudicante que sobrevive sob os efeitos de uma Constituição que, se avançou no quesito direito social, se mantém aferrada aos tempos da ditadura com a presença de entulhos autoritários como os artigos 142 e 144. O Estado de direito no Brasil é tão frágil que precisa das Forças Armadas para garantir direitos básicos do cidadão, como o de ir e vir e o de expressar opiniões.

Citei o caso do Rio de Janeiro, em 2008, mas bem que poderia trazer vários outros exemplos de eleições da primeira década deste século nas grandes capitais e em cidades de médio porte. Recordo de sair para votar, em Campina Grande (PB), nas eleições de 2004 e 2008 e ver soldados do Exército, perfilados próximos as sessões eleitorais, com roupas de combate, pintura camuflada nos rostos, armados de fuzil. Lembro, ainda, de o meu filho, pequeno na época, me perguntar se o Brasil estava indo para uma guerra.


Em 2020 a “festa da democracia” teve pesado custo. Aqui no Brasil 247 vimos uma matéria, com dados do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (RJ), dando conta que nas campanhas para as eleições municipais teve um político assassinado a cada três dias. As organizações não-governamentais Terra de Direitos e Justiça Global mostraram que houve um ataque a vida de políticos a cada treze dias. As ONGs consolidaram dados diversos entre janeiro de 2016 e setembro de 2020 e mapearam exatos 327 casos de violência contra políticos. As eleições municipais no Brasil mais parecem uma disputa por territórios do que propriamente um processo de escolha democrático.

Vejamos, por exemplo, que em 09\11 o candidato a vereador por Guarulhos (SP), Ricardo de Moura (PL), foi baleado no ombro e nas pernas. O crime ocorreu quando ele fazia uma transmissão, pela internet, de um lugar público. A impressão é que se queria “avisar” a Ricardo para ele não fazer campanha naquele local. Já no 2º turno, o dirigente do PSOL, Anselmo Pires, foi alvo de atentado a tiros enquanto participava de uma atividade da campanha de Elói Pietá (PT), candidato a prefeito, não por acaso de Guarulhos. Em 24\09 o candidato a vereador em Patrocínio (MG), Cássio Remis (PSDB), foi assassinado a tiros quando fazia uma “live” denunciando os desmandos da prefeitura. O assassino foi o irmão do prefeito e secretário de obras da cidade, Jorge Marra. Em 10\11, Klaus Lima (PSB), candidato a prefeito de Escada (PE) foi também baleado. No mesmo dia, a candidata a vice-prefeita de Belém (PA), Patrícia Queiroz (PSC), teve sua casa atingida por tiros. Temos, então, candidatos defendendo a violência como solução para a violência. Esta é a prática da extrema direita que governa o país e quer estender seus tentáculos Brasil afora.

O Grupo de Investigação Eleitoral (GIEL), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, levantou que neste período eleitoral 25 candidatos foram assassinados. O GIEL mostra um padrão de regularidade, pois tivemos 23 candidatos mortos nas eleições de 2016, 16 nas de 2012 e 25 nas campanhas de 2008. É por esse estado de coisas que o coordenador do GIEL, Felipe Borba, diz que a “violência eleitoral afeta da livre escolha dos eleitores à oferta de candidatos e à atuação parlamentar”. Assim, os processos não são fiadores únicos de uma pretensa democracia consolidada. Nossa “festa da democracia” mais se parece com uma carnificina. Consideremos, ainda, que nas eleições locais explode a violência perpetrada pelas famílias que fazem do poder público seu negócio particular, hereditário.

Recuperei o "Economist Intelligence Unit’s Index of Democracy - 2008" - um índice, compilado pelo Economist britânico, que avalia a qualidade da democracia em 165 países. O índice de 2008 confirmou tendência global no processo estacionário de desenvolvimento das democracias após a década de 1990 quando haviam se expandido. A edição 2008 comparou seus resultados com a de 2006 e viu um padrão dominante de estagnação, mesmo que a tendência de regressão só tenha se dado com a extrema direita subindo ao poder nos anos 2010. São os casos de Viktor Orbán (Hungria, 2010); do Partido Popular Dinamarquês e do Partido Popular Suíço em 2015; de Mateusz Morawiecki (Polônia), Rodrigo Duterte (Filipinas), Recep Erdogan (Turquia), Donald Trump (EUA) - eleitos em 2016; e Sebastian Kurz (Áustria, 2017) e Jair Bolsonaro (Brasil, 2018).

O Índex considera cinco variáveis: 1) processo eleitoral e pluralismo; 2) liberdades civis; 3) funcionamento do governo; 4) participação política; 5) cultura política. Os países são classificados em quatro tipos de regimes: democracia consolidada; democracia falha ou rachada (pela tradução literal); regime híbrido; regime autoritário. Não por acaso, o Brasil aparece como democracia rachada, algo que contraria a ideia de consolidação democrática, na edição 2008. Colocaria o Brasil entre as colunas dos regimes híbridos, pois mesclamos procedimentos democráticos com entulhos autoritários, e dos regimes ditatoriais.


O cientista político norte-americano Scott Mainwaring, em um antigo artigo intitulado “Classificando Regimes Políticos na América Latina”, define que democracia é o regime político que (1) promove eleições competitivas, livres e limpas para legislativo e executivo; (2) pressupõe cidadania adulta e abrangente; (3) protege liberdades civis e direitos políticos; (4) governos eleitos de fato governam e militares estão sob controle civil. Sugiro, ao caro leitor, que verifique (empiricamente) se uma dessas quatro condições existem de fato em nosso sistema político. Se com muita boa vontade encontrar uma delas, mesmo que de forma procedural, como formalismo, não como substância, significa que não podemos afirmar que somos uma democracia, mesmo que ainda se possa questionar se já vivemos numa ditadura. Como Pirro, que logrou ganhar batalhas contra as legiões romanas, mas a um preço tal que o fez questionar a validade das vitórias, temos que repensar a “festa da democracia” eleitoral brasileira, se ela vale o quanto pesa.


Nenhum comentário: