"A situação está bem
feia, mande as tropas!". Essa ordem não foi dada por Vladimir Putin,
Volodymyr Zelensky, Recep Erdoğan, Viktor Orbán ou por Idi Amin Dada, Rafael
Trujillo, Jean-Claude Duvalier ou mesmo Augusto Pinochet - sanguinários
ditadores que matavam por lazer em seus países nos tempos da Guerra Fria. Na
verdade, ela foi expedida por Donald Trump, o 47º presidente eleito nos Estados
Unidos da América. Viva a democracia no “império da liberdade”, que se porta
como uma república bananeira sul-americana!
Estamos na metade da
terceira década do século XXI nos comportando como se vivêssemos nos anos 1930,
pois não há um dia em que não se questione se é melhor viver em uma sociedade e
um Estado democráticos ou em uma estrutura ditatorial. O caso grotesco,
burlesco, dos EUA que implodiram, com bombas do fascismo supremacista, o sistema
que já foi tido como modelo para o mundo ocidental é algo lancinante.
Levitsky e Ziblatt (2018)
mostram como as democracias mais sólidas e tradicionais vão legalmente se
enfraquecendo, “por dentro”, até perecerem. Fazem-nos pensar sobre porque as democracias
se deixam dominar pelo fascismo e de como a crise política e econômica dos EUA propiciaram
a ascensão de Trump. A questão é recorrente, ainda que deva ser enfrentada: por
que se renuncia à democracia para se viver sob o tacão de ditaduras? Porque
brasileiros, argentinos, estadunidenses, turcos, húngaros, austríacos, poloneses,
russos, ucranianos, etc, aceitam que o fascismo ascenda pela via eleitoral?
Em “O 18 Brumário de Luís
Bonaparte”, Marx analisa como a burguesia francesa aceitou perder a liberdade
política, pela via de um golpe de Estado, para não perder sua propriedade ante
um processo revolucionário. Ler o “18 Brumário” é iminente e impreterível para
entendermos as limitações e contradições da democracia liberal, sendo a
principal delas o que chamo de a mãe de todos os paradoxos – quando se usa procedimentos
democráticos para pedir o fim da democracia. Marx analisa as sociedade forjadas
pelas revoluções burguesas do século XVIII:
(elas) precipitam-se rapidamente de sucesso em sucesso, um efeito
dramático é suplantado pelo próximo, pessoas e coisas parecem refulgir como
brilhantes, respira-se diariamente o êxtase; porém elas têm vida curta, logo
atingem o seu ponto alto e uma longa ressaca toma conta da sociedade antes que,
novamente sóbria, aprenda a apropriar-se dos resultados do seu período
impetuoso e combativo (Marx, 2012, p. 62).
Aqui, Marx trata da democracia
que não passa de uma efemeridade em países capitalistas baseados na exploração
do capital sobre o trabalho. Ele quer mesmo nos fazer ver que liberdade e
igualdade são nada em um sistema que só pode funcionar se esta não existir e
aquela for tão somente um direito da classe que detém os meios de produção.
James Davidson demonstra essa questão na prática, quando discute o dilema da escravidão
e da liberdade ocuparem o mesmo espaço, algo que atormenta o povo estadunidense
desde o início do século XIX.
Quando os Estados Unidos tomaram 1,2 milhão de quilômetros
quadrados de terras do México, o território recém adquirido forçou os
norte-americanos a lidar com a questão [de se] escravidão e a liberdade podiam
existir lado a lado? Durante anos a maioria dos norte-americanos brancos disse
que sim. Eles tocavam seus negócios, conviviam com a escravidão de um jeito ou
de outro e toleravam opiniões divergentes (Davidson, 2016, p. 142)
Os estadunidenses são
dilemáticos, paradoxais, pois dizem venerar a liberdade, mas a contrariam desde
quando forjaram um sistema republicano (democrático e federalista) no final do
século XVIII. Para isso, basta ver que em nome da liberdade promoveram guerras,
invasões, golpes de estado, ditaduras e intervenções de toda sorte em todo e
qualquer país que lutasse por .... liberdade. Outrora modelo a ser imitado, a
democracia estadunidense agoniza, pois seus princípios foram trocados por
interesses de classe e do Complexo Industrial Militar que James Cook chama de
um Estado total, com estratégia de guerra total, dedicado ao poder do dólar e
das armas. Ele cita Eisenhower que alertou para “um colosso que domina vastas
áreas da vida americana (que) é a verdadeira ameaça à democracia” e relata como
os EUA adotaram, nos anos 1950, o modelo prussiano militar industrial que
produz ditadores como Hitler e faz da guerra sua própria razão de ser. Trump aí
está para não deixar Cook mentir.
Os EUA provam que não
existem democracias imunes ao fascismo. A ironia é ver o berço da democracia
moderna, o império da liberdade, agindo como república bananeira com um ditador
bufão que arregimentou seguidores para invadir o parlamento. O escárnio é que,
colérico com a revolta do povo preto, pobre e imigrante dos EUA, Trump (e sua
malta supremacista) tenha lançado mão da ideia Coringa: "quando tudo
estiver perdido, estabeleça o caos". Aceitemos a verdade sine-qua-non: a
democracia não é mais hegemônica no ocidente, se é que um dia foi!
É risível que o “Império do
Norte” prefira usar o toque de recolher ao invés dos procedimentos democráticos.
Agora mesmo estamos vendo o governo de Trump pondo soldados da Guarda Nacional
nas ruas de Los Angeles para conter protestos e manifestações contra as
operações anti-imigração. A terra da liberdade não suporta ver sua população
lutando por liberdade e adota despudoradamente o modus operandi das ditaduras. Trump
mandou as Forças Armadas atacarem imigrantes que protestam em várias cidades da
California. Na verdade, ele está hostilizando as bases da democracia porque,
tal qual Hitler, quer mais é por fim nela. Comparemos as situações, pois a
pregação hitleriana baseava-se na disseminação do ódio contra todos os que
vinham de fora da Alemanha. O fato, é que o fascismo odeia visceralmente todos
os que não são de dentro, que vem de fora.
Jamil Chade assim relatou a situação nos EUA: “Neste final de semana, a
decisão da Casa Branca de usar tropas para garantir que prisões e deportações
possam ser conduzidas abriu caminho para uma militarização da ação contra
estrangeiros. Em postagens nas redes sociais, Trump afirmou que os manifestantes
estavam liderando uma "insurreição" e que, portanto, a resposta seria
determinada pelo Pentágono”.
Desde a invasão ao
Capitólio, os estadunidenses veem seu sistema político derretendo sob o fogo do
autoritarismo. Os Vargas, Peróns, Arbenzs, Jangos, Allendes, Dilmas,
experimentam o agridoce sabor da vingança vendo o “stupid white man” tocando
fogo em suas instituições democráticas. O Estado profundo dos EUA (deep state)
evita falar em golpe de estado, até porque não conhece um termo, em inglês, para
designar o ato de se tomar, pela força das armas, o poder conquistado pelo voto
– é que nunca tinha havido um golpe de estado nos EUA. É por isso que usam a
expressão francesa “coup d’état”. Poderiam até o “putsch” alemão – combinaria mais...
Como no Brasil a democracia
é apenas uma fina camada sobre um espesso extrato de autoritarismo, dizemos com
todas as letras que tivemos e temos golpe de Estado, intervenção militar,
quartelada, ditadura. Os acadêmicos estadunidenses precisam criar uma expressão
para o que pode virar regra, pois o fascismo supremacistas não se converterá à democracia
liberal. O que Trump e seus bisões amestrados fizeram não difere tanto do
putsch nazista de 1923. Na verdade, o fascismo precisa dessas ações
teatralizadas para vir a público atestar suas reais intenções e arrecadar a
simpatia popular.
Hoje, 5ª feira (12\06), parte
da cidade de Los Angeles está sob toque de recolher, sitiada por Forças
Militares, numa tentativa do governo de impedir que ocorram novos atos e protestos
contra as operações federais de imigração de Trump que nem cogita pacificar a
situação, pelo contrário, está escalando o morro autoritário em busco do cimo
onde impera a violência. A ação de Trump, contra o seu próprio povo, serve para
que estadunidenses parem de uma vez por todas de falar em liberdade e passem a
falar de segurança, força, repressão, perseguição aos imigrantes, combate a
corrupção, enfim, a pauta da direita fascista mundo afora.
Benjamin Franklin dizia que “os que abrem mão
da liberdade essencial, por um pouco de segurança temporária, não merecem nem
liberdade nem segurança”. Um dos “Pais Fundadores” dos EUA, Franklin fez parte
do “iluminismo estadunidense” que defendia princípios liberais, republicanos e
federalistas, se contrapunha à autoridade centralizadora, absoluta, e aos
privilégios da aristocracia. Se vivo fosse, seria chamado de comunista e mandado
à Cuba, pois o país que exportou um modelo de democracia não suporta ouvir
falar em liberdade.
COOK, Fred James. O Estado militarista. São Paulo:
Civilização Brasileira, 1965.
DAVIDSON, James West. Uma breve história dos Estados Unidos.
2ª ed. Porto Alegre: L&PM, 2016.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem.
Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
JINKINGS, Ivana; SADER, Emir. [Orgs]. As armas da crítica –
antologia do pensamento de esquerda. São Paulo: Boitempo, 2012.