É o tempo que passa por nós ou nós é que passaríamos por
ele? O tempo está em nós e em nosso entorno em três etapas: passado, presente e
futuro. Apesar de que quando o passado passa e o futuro chega são ambos presente.
Resigno-me a viver o meu presente, mesmo com a impressão de que estou no tempo
errado. Sigo achando que deveria ter vivido o “meu” tempo social, político e
cultural entre os anos 1950 e 1970, pois sinto-me cada vez mais “desblocado”
neste tempo que pouco ou quase nada me diz de satisfatório. É que as coisas que
gosto não são do meu presente, são do meu passado. Daí que cada vez mais me custa
acreditar no futuro, pois se o presente não é nada bom, o que dirá o futuro.
Estou divagando, pois completamos o 61º “aniversário” do
Golpe Civil Militar de 1964. Sempre se poderá dizer que é tempo suficiente para
se esquecer a tragédia gerada por um golpe de Estado, mas é sintomático que tanto
tempo depois sigamos falando em golpes, atentados aos poderes da República,
intervenções militares e autoritarismos de toda sorte. É significativo que
tantos insistam em deixar o passado passar. Ainda bem que temos “Ainda estou
aqui” para impedir que nosso passado seja olvidado. É como diz Kari Sorjonen, “mas,
o problema é que o passado nunca fica onde deixamos ele”.

Passados 61 anos do golpe de 1964 temos muito a reavaliar,
pois à medida que nos afastamos temporalmente do acontecimento nossa visão turva,
embaça. Temos que redimensionar os eventos entre março e abril de 1964 para os dias
de 2025. Reflitamos sobre a cultura política pretoriana herdada da ditadura
militar, já que em nossa conjuntura temos as ameaças que nossa frágil
democracia sofre, como os atos golpistas e terroristas ocorridos entre novembro\22
e janeiro\23. Por que as memórias do golpe e da ditadura militar ainda nos são
tão vivas? Seria pelas feridas ainda não cicatrizadas e por termos uma
sociedade e um Estado recheados de entulhos autoritários, que um débil processo
de liberalização não foi competente para extrair do nosso entorno político e
social?
Uma das causas para o golpe de 1964 foi a sobrecarga conflitante
(e desnecessária) entre democracia e mudanças sociais, pois a sociedade e o
espectro político colocavam estes dois fatores em polos opostos, quando deveriam
ser os lados de uma mesma moeda. Atores políticos à direita acreditavam que
pela democracia se chegaria às mudanças sociais, por isso deram o golpe e
instalaram uma ditadura que durou 21 anos. Para atores à esquerda só mudaríamos
pondo fim a democracia. O confronto entre as forças contrárias e favoráveis às
reformas de base contribuiu para a destruição das instituições democráticas. O
resultado a que se chegou bem conhecemos: democracia inexistente e nenhuma
reforma social!
A liberalização política (não considero que houve redemocratização,
nem justiça de transição com medidas para tratar crimes cometidos na ditadura)
efetivada com a eleição de Tancredo Neves é enviesada, pois manteve no cenário político
atores da ditadura, aqueles mesmo que “Ainda Estou Aqui” denuncia. O que tivemos
foi um pacto, iniciado em 1974 e que resultou na tal Nova República de 1985,
entre as forças políticas e a sociedade capitaneadas pelos próprios ditadores
militares. O resultado foi um processo em que lenta e insolentemente se foi
inserindo elementos do ritual democrático nas instituições militarizadas sem
reformá-las, mantendo intocada a espinha dorsal do regime ditatorial: o poder
militar.

Quando o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre
de Moraes, derrubou o sigilo dos depoimentos de militares e civis, colhidos pela
Polícia Federal (PF) no inquérito que apurou as tentativas de golpe de estado, fui
atingido por um otimismo que a muito não tinha, se é que já tive. É que
finalmente acessaríamos informações que historicamente são sigilosas. Enfim, saberíamos
como generais se comportaram ao tramarem mais um golpe de estado em nossa querida
República bananeira. Foi assim que soubemos como Braga Netto, Paulo Sérgio
Nogueira e Augusto Heleno assessoraram Jair Bolsonaro na trama golpista. Foi
quando se revelou que o almirante Marcos Antônio Freire Gomes e o brigadeiro Carlos
Baptista Jr confirmaram que Bolsonaro comandou de perto a montagem de toda a trama
golpista.
Atentemos para a grandeza da questão. Pela primeira vez, em
136 anos de República, militares de altíssimas patentes e um ex-presidente irão
ao banco dos réus por crimes que envolvem uma Organização Criminosa armada
que tentou abolir violentamente o Estado Democrático de Direito, através
de golpe de Estado, causando dano qualificado pela violência, grave
ameaça contra o patrimônio da União, com prejuízo às vítimas, além
da deterioração de patrimônio tombado. Convenhamos, isso não é pouco, se
considerarmos que os militares foram anistiados pelos crimes cometidos durante
a Ditadura Militar.
Os depoimentos falam de encontros palacianos onde se
discutia medidas para impedir a posse de Lula e consumar um golpe de Estado que
faria de Bolsonaro um ditador. Entenda-se por impedir a macabra operação “punhal
verde e amarelo” que pretendia assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes. Os
depoimentos dão solidez à tese da condenação de Bolsonaro e seu Estado Maior
golpista. O general Freire Gomes confirmou que esteve com o ex-ministro Paulo
Sérgio Nogueira numa das reuniões em que a tal minuta golpista foi apresentada
e ratificou que Bolsonaro propôs que ela se tornasse decreto para a implantação
de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), de Estado de Defesa ou de Sítio.

Um arsenal autoritário, trazido da ditadura militar e que
permaneceu em nosso ordenamento jurídico político, dando lastro às
prerrogativas militares, seria usado contra o processo eleitoral vencido por
Lula. Outra revelação é que o general Paulo Sérgio “comprou” a ideia fajuta do
bolsonarismo, de uma suposta fragilidade das urnas eletrônicas, e partiu célere
em busca de indícios de fraudes. Ao não encontrar, não se retirou da
conspiração golpista, pelo contrário, seguiu reforçando-a com o peso de suas 4
estrelas de general. Os depoimentos mostram quem é quem no “18 brumário” de
Jair Bolsonaro. Ao retirar o sigilo, Alexandre de Moraes deu um xeque mate na
defesa de Bolsonaro que não poderá dizer no julgamento que as reuniões eram
inofensivas à democracia, justamente pela abundância de provas.
Ficamos ainda sabendo que o ex-ministro Anderson Torres se
ofereceu, na qualidade de assessor jurídico e sabujo do então presidente, para
redigir o decreto golpista e que o ex-comandante da Marinha, Almir Garnier, colocou
suas tropas à disposição de Bolsonaro para que se operasse o golpe de Estado. A
situação de momento é a constância de um manancial de provas que podem vir a
condenar Bolsonaro e seus asseclas pelo crime de tentativa de abolição do
Estado democrático de direito. Se tem elementos para indiciar os mandantes, também
têm para acusar, denunciar, processar toda a camarilha golpista. É isso que espero
com meu otimismo temporão, pois anistia é o ...
Certo, não temos democracia política consolidada, pois esta
reúne mecanismos e práticas associados às formas de decidir em favor de
interesses sociais – além das normas que regem o bom funcionamento das
instituições e as atitudes que marcam a relação entre elas e a sociedade civil.
E não tivemos um processo em que sociedade civil e Estado pudessem banir as
prerrogativas que os militares atribuíram para si durante 21 anos de ditadura. É
que lá eles seguiam a lógica da Doutrina de Segurança Nacional que dizia que o
inimigo a se combater estava dentro do território nacional e não fora dele. O
fato é que as Forças Armadas seguem mais preocupadas com a segurança interna do
que com a externa.
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Este processo que começa a ser movido contra a OrCrim
bolsonarista, no âmbito do STF, pode desencadear algo que nos leve a pôr fim às
prerrogativas militares, que acabe com a Anistia de 1979, que reveja os entulhos
autoritários de nossa Constituição, a exemplo dos Artigos 142 e 144, etc, etc,
etc. Eu disse pode, não afirmei que vai, pois otimismo não rima com ser
brasileiro.
31 de março de 1964, digo de 2025.