sexta-feira, 4 de abril de 2025

Queria ter 40 anos em 1969 - Parte II

 Da Série "Um artigo para chamar de meu" - Publicado em junho 2009 no www.paraibaonline.com.br 


Tivemos as estréias do Concorde, do Boeing 747, da ArpaNet, embrião da Internet, e se isolou um gene. Nada como Neil Armstrong pisar em solo lunar e dizer a tal frase que, acho, não foi de sua lavra. Os soviéticos não vacilaram e a Soyuz 6 foi dar uma voltinha no espaço. De quebra, foi à primeira transmissão de televisão via satélite para o mundo. Contava minha mãe que assistiu aquilo tudo, emocionada, enquanto eu resumia 1969 ao precioso líquido que jorrava do peito dela. 


Para o bem e para o mal, estreou o Jornal Nacional da Rede Globo, com Cid Moreira, que já tinha cabelos brancos, e Jackie Stewart foi campeão na Fórmula 1. Com o alterego de Edson Arantes do Nascimento, que fez seu milésimo gol, o Santos foi campeão e meus times, Campinense Clube e Flamengo, não ganharam nada – resguardavam-se para me alegrar no futuro.

 Nos EUA, Charles Manson mandou os fanáticos de sua seita assassinarem a atriz Sharon Tate e a imprensa usou o fato para desviar a atenção das atrocidades que o exército cometia no Vietnã, como o massacre de My Lai em 1968. Nixon entrou na Casa Branca e foi lépido e fagueiro até o desastre da guerra. 250.000 pessoas marcharam em Washington pedindo o fim da Guerra do Vietnã. Na Líbia, Kadhafi tomou o poder com um golpe e teve sólida carreira de ditador. O Congresso Nacional Palestino apontou Yasser Arafat como líder da OLP e Charles de Gaulle renunciou à presidência devido às ebulições do “maio francês”. Prova que 1968 acabou e foi sucedido por 1969, goste-se ou não disso. O processo histórico é assim mesmo. 

A VPR, de Lamarca, e a ALN, de Marighella, sequestraram o embaixador Elbrick. Puderam, por momentos, emparedar a ditadura. Mas, ela deu o troco e fuzilou Marighella no final do ano. Morria um ícone da esquerda, daí tantos amaldiçoarem 1969. Já Lamarca desertou do quartel onde servia e foi à luta armada, fez uma imperceptível cirurgia plástica e namorou a musa da revolução, Iara Iavelberg. Tudo em 1969, não dava para perder tempo, logo ele, também, seria morto. 

Achando o AI-5 limitado, Costa e Silva decretou 11 Atos Institucionais em 1969 e outorgou a 7ª Constituição Brasileira, que incorporou todos os atos e decretos desde o golpe de 1964. A ditadura era legalista, o suprassumo do autoritarismo era disposto em lei. Pródiga em crises institucionais, teve uma séria quando Costa e Silva teve uma trombose e afastou-se. Assumiu uma junta de três militares, logo alcunhada de “os 3 patetas”, que impediu o vice (civil) Pedro Aleixo de assumir para ele aprender a não ser “do contra”, pois tinha se recusado a assinar o AI-5. Os “patetas” baixaram o AI-14, instituindo a Lei de Segurança Nacional – que previa pena de morte, prisão perpétua e banimento. A linha dura bancou a candidatura de Médici, tido como o pior dos ditadores, mas outro qualquer seria igual, era a lógica da época. Para moldar a geração que viria (a minha) o Decreto-Lei nº 869 pôs “Educação Moral e Cívica” no sistema educacional. E para encerrar o ano político de 1969, Paulo Maluf assumiu a prefeitura de São Paulo, iniciando uma eficiente carreira de predador do Estado. 


Sinto inveja de Benjamin Button, o personagem de Scott Fitzgerald que nasce velho e morre bebê. Poderia ter nascido em 1929 com 80 anos. Regredindo, em 1969 teria 40 anos e veria os fatos aqui descritos. Assistiria a um show de Chico Buarque e refletiria sobre as canções, ao invés de ir para os shows de hoje onde se pede para ²tirar os pezinhos do chão e jogar as mãozinhas para cima². Ouviria os lançamentos da época: Abbey Road, Led Zeppelin II, Tommy, Ummagumma, discos de Chico, Caetano e Gil, ao invés de ter que aturar o excremento que a indústria musical atual produz. Acompanharia as lutas e fatos políticos da época, ao invés de assistir a pasmaceira previsível que se tornou a política atual. Me preocuparia com o “pequeno” passo de Armstrong, ao invés da gripe suína, do aquecimento global e da corrupção no Brasil. Gostaria de ter 40 anos em 1969 e acompanhar tudo in loco. Mas, assim, tal qual Button, hoje eu teria dois meses de vida e seria inane. Como diria Lennon & McCartney, let it be... 

Dedico este artigo a minha “Daisy” (eterna namorada). “No curioso caso de Benjamim Button”, Daisy (Cate Blanchett) é sua paixão. Enquanto ele rejuvenesce, ela envelhece, mas o amor deles resiste a tudo, principalmente ao tempo. Em meu caso, minha Daisy não envelhece. Com seu amor, ternura e alegria oxigena minha vida, impedindo que eu mesmo envelheça. Assim, nosso amor nos eterniza!


Queria ter 40 anos em 1969 - Parte I

Da Série "Um artigo para chamar de meu" - Publicado em junho 2009 no www.paraibaonline.com.br 


Faço 40 anos como se degustasse um vinho raro, sorvendo sua essência. Aos 40 não se é mais jovem, imprudente, mesmo que ainda não se ganhe lenços e meias. Sinto-me bem, os cabelos brancos não me inquietam e o colesterol está em 166. Tenho esposa e filhos que me amam, um mínimo de experiência, já fiz algumas coisas boas, e outras nem tanto, e ainda não penso na aposentadoria. 


Nasci em 1969, o ano maldito em oposição a 1968, que para muitos não terminou. Se um não findou, o outro não pode ter começado. Já li que 1969 começou na fatídica 6ª feira, 13\12\, quando o AI-5 foi decretado. Nessa excêntrica visão, fatos parecem não se processarem, acontecem de forma estanque ou são randomicamente postos nos anos. Se ‘68’ mudou vidas, ‘69’ fez o quê? Meu apreço por este ano se dá pelo que nele aconteceu e não porque nele nasci. Farei uma seleção, arbitrária como todas, de fatos que queria ter visto in loco, não importando se bons ou ruins, pois a realidade é assim, diferente do ideal. Veremos que o “museu de grandes novidades”, do qual Cazuza falava, começou aqui. 

Em 1969 “Butch Cassidy and the Sundance Kid”, com Paul Newman e Robert Redford, foi lançado, com bela trilha sonora. O 6° filme de James Bond, “007 a serviço de sua majestade”, saiu com George Lazenby – pior, só Daniel Craig que desconhece a psique bondiana. Tivemos ainda clássicos como “Satiricon”, “Macunaíma”, “Meu ódio será sua herança”, “Perdidos na noite”, “Easy Rider”, “Z” de Costa-Gravas e “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” de Glauber Rocha. 


Meus heróis, The Beatles, fizeram “Abbey Road” - arte em forma de disco. Nasci embalado por Something, Come Together, Here Come the Sun, Golden Slumbers, Octopus´s Garden. Eles se apresentaram pela última vez, no telhado da Apple Records, em Londres. O show foi encerrado pela polícia, eles riram e John Lennon sentenciou: “the dream is over”. Lennon disse que era só mais uma banda de rock que acabava, pois havia uma nova realidade. Era “apenas” uma banda de rock, mas que banda! Azar meu, cheguei quando eles iam embora. 

Pink Floyd lançou Ummagumma – experimentação e psicodelismo levados as últimas consequências.The Who, com Daltrey & Townshend drogadíssimos, lançou a ópera-rock “Tommy” e em Led Zeppelin II o rock era como tinha que ser: guitarras pesadas e distorções. Caetano Veloso lançou seu “álbum branco” e os Mutantes fizeram seu segundo disco com versos como “a vida é um moinho/é um sonho o caminho” e Gal Costa surgiu com seu primeiro disco solo. Brian Jones, do Rolling Stones, apareceu morto numa piscina. Fiéis ao lema “pedras rolantes não criam musgo”, os Stones lhe dedicaram o show do Hyde Park, em Londres, três dias após a tragédia. Simon & Garfunkel fizeram a turnê de “Bridge Over Troubled Water", gravaram tudo e, 15 anos depois, saiu “Live 1969”, que comprei e ouvi até que minha mãe implorasse para parar.

Chico Buarque foi para a Itália e lançou um disco com músicas em italiano. Lá ficou, pois a obtusidade militar não o pouparia. Ficou seu alônimo Julinho da Adelaide que gravou “Acorda Amor”, mostrando como era o Brasil de 1969. Dizia Julinho: “se eu demorar uns meses convém, às vezes, você sofrer; mas depois de um ano eu não vindo, ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”. Caetano e Gilberto Gil foram presos, humilhados e exilados, mas Gil deixou “Aquele Abraço”. 


O IV Festival Internacional da Canção e o V Festival da MPB aconteceram, polêmicos como queria a época e ricos em talentos, apesar de “Dom & Ravel”, o Chitãozinho e Xororó da época, só que pior e a serviço da ditadura. Surgiu o tablóide “Pasquim”, irreverente e debochado, que vendeu 200 mil cópias com Leila Diniz na capa. Enquanto isso, Vinícius de Moraes casava-se pela 5ª vez, tomava seu cachorro engarrafado e compunha, com Tom Jobim, belas canções. Vera Fisher foi eleita Miss Brasil e entrou para o show business. E teve o festival de Woodstock - um desbunde geral, regado a sexo, drogas & rock and roll. Imagine ver Joe Cocker cantando “A Little Help From My Friends”, com aquele vozeirão de bluzeiro do meio-oeste americano?!


quinta-feira, 3 de abril de 2025

"Brincando" com a IA e se queimando com as Big Techs

 

Andei utilizando a "inocente brincadeira de transformar uma imagem minha em desenho", até fiz umas postagens no Instagram. Mas, isso não tem nada de inocente, muito menos é uma brincadeira. Facilmente, me deixei levar pela "modinha" de pessoas transformadas em personagens dos animes, principalmente dos japoneses. Afinal de contas, quem não gostaria de ver a imagem do aniversário do netinho em formato anime? Foi exatamente isso que pensei, antes de refletir, quando vi o que se pode fazer com nossas imagens que são, na verdade, nossas lembranças, memórias, sentimentos, etc. 



Essa é mais uma das estratégias das Big Techs para ter acesso a uma das coisas mais valiosa do mundo em nossos dias, se brincar mais do que o próprio petróleo, e que dá sustentação ao modelo de negócio das plataformas, garantindo que o processo de acumulação de capitais siga sendo a base de sustentação do sistema capitalista. Claro, estou falando de DADOS e de INFORMAÇÃO, que não brotam da terra feito mato, e que vão sendo a matéria prima dos SERVIÇOS de INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA).

Funciona assim: eu dou vários dados e informações sobre mim e a IA me dá em troca um desenho bonitinho meu. Lembrando, sempre, que eu ainda pago por isso. Eu fico com o desenho e a Big Tech fica com os meus dados, que vão alimentar os algoritmos e que me "oferecerão" produtos, na forma de publicidade, para que eu consuma como se não houvesse amanhã. 

O fato é que as Big Techs avançaram bastante em seu poder sobre o funcionamento das redes sociais e, consequentemente, sobre nossa subjetividade coletiva. Precisamos urgentemente refletir sobre com uma "trend" (uma tendência que nomeia conteúdos que atingem picos de popularidade instantaneamente e por um certo tempo nas redes sociais) se torna algo viral para logo depois cair em nosso esquecimento. Digo no nosso, pois os algoritmos possuem uma memória de elefante e não "esquecem" nenhum dado que passamos para eles.



Vi, no Instagram, Mari Lacerda (@MariLacerdaPT) explicando que as redes sociais foram "inundadas (por) imagens de pessoas transformadas em personagens de anime na estética do Studio Ghibli, conhecido por obras como "A viagem de Chihiro". Inclusive, Hayao Miyazaki, que fundou o Studio Ghibli, disse ser contra o uso da IA para produção de animações, pois ela usa obras de artistas sem autorização e sem atribuir créditos.

Mari Lacerda diz ainda que "é um novo nível de domínio capitalista sobre trabalhadores e trabalhadoras (pois) 'evoluímos' da exploração da força de trabalho para o roubo do trabalho alheio, sem qualquer ideia do pagamento por esse trabalho". Ainda, precisamos atinar para o fato de que essas tais "trends" atestam o poder das Big Techs, e de suas ferramentas, sobre as sociedades pela facilidade com que criam o famoso efeito manada. É aquela história mesmo de eu-vou-postar-porque-tá-todo-mundo-postando ou se-todo-mundo-está-fazendo-não-deve-ter-problema-nenhum.


domingo, 30 de março de 2025

Quando falo em política, estou falando em poder.

 

Na linguagem política nada pode ser mais usado do que o conceito de poder. Aliás, falar em política é falar em poder. O poder é um conceito que não é exclusivo da política, pois é utilizado em nosso cotidiano e em vários aspectos de nossa vida. O filósofo inglês Bertrand Russell afirmava que o poder é o ato de produzir efeitos desejados. Poder é uma palavra autoexplicativa. Por poder se entende a capacidade de se fazer algo, ou de se obter algo. Poder é um conceito próximo do termo influência.

Ter poder significa ter os meios para se conseguir algo ou para levar alguém a fazer alguma coisa, não importando se ela quer ou não fazer. O poder é a capacidade que sicrano tem de levar fulano a atingir beltrano. Mas, em que consiste o poder na política? Qual a função do poder em nossa vida familiar e social? Qual a diferença entre ter poder e ter influência? Por que nos organizamos com base no poder e não em outros princípios ou valores?

O poder é uma massa de energia que a sociedade coloca, através das eleições, nas mãos do governante para que ele realize objetivos dos cidadãos. Claro, isso só deve acontecer dentro dos marcos legais. Mas, isso tudo está ficando muito teórico. Vamos tentar tornar mais prático. Essa massa de energia que se coloca na mão do governante é composta de recursos financeiros e físicos em operação como usinas, estradas, redes de energia, etc.



Essa massa de energia, chamada poder, é composta, também, de recursos de pessoal. São os funcionários públicos que são contratados para operar as instalações públicas e fazer a "máquina" do governo funcionar. Claro, quem comanda esta massa de energia detém o poder. Quem comanda o governo, se responsabilizando pelo seu funcionamento, e pelo provimento de bens e serviços para a população, tem não só de direito, como de fato, poder.

Esse poder se dá nos níveis de uma cidade, de um estado ou de um país, e nas várias instituições políticas que compõem o Estado-nação. Mas, tudo isso continua muito teórico e eu vou tentar simplificar. Por que será que as pessoas lutam para ter poder? Apenas pelo simples prazer de ter poder? Não, pois o poder não se basta a si próprio. Luta-se para se ter poder como forma de se adquirir os meios que permitem comandar a massa de energia.

É de posse dessa massa de energia que é possível se realizar objetivos individuais e coletivos, pois a natureza do poder é impositiva. O poder não pede, manda. Não convida, impõem. Não sugere, determina. Mas, esse poder que não pede tem que ser dotado de estrutura legal, senão vira algo acima do bem e do mal. Nossa maior contradição política foi criar um instrumento que usa a força física para garantir que decisões serão respeitadas.



Certo, é uma contradição termos um aparato dotado de força para garantir que as decisões do poder serão cumpridas e obedecidas. Mas, se não fosse assim como aceitaríamos a imposição? Quem cumpriria uma lei se soubesse que não seria cobrado por um aparato dotado de força? Você, caro leitor, faria isso? Ou teríamos que ser todos um bando de “madres teresas de Calcutá” para que o aparato de força não fosse necessário?

Convenhamos, o poder é um meio eficiente para a realização de tarefas e para afetar comportamentos. Você já imaginou como seria a vida se não fosse essa massa de energia que nos leva a fazer coisas? Mas, essa discussão continua teórica! Vou tentar mais uma vez torná-la mais práticas. Ninguém gosta de pagar impostos, mas se este pagamento fosse voluntário, não haveria como financiar o governo. Ninguém gosta de ir à guerra, mas se esta decisão fosse voluntária, não se defenderia a soberania nacional. Todos querem dirigir seus carros como bem entendem. Mas se fosse assim, o trânsito seria bem pior do que de fato é.



Assim, chegamos a uma conclusão sobre o poder: ruim com ele, pior sem ele! Se nossa convivência social não fosse baseada na influência, persuasão e até imposição como nos organizaríamos? É por isso que os grupos políticos se lançam na luta pelo poder, através das eleições. Quem conquista o governo, alcança o poder, e ganha o direito legítimo de usar aquela "massa de energia" para realizar os objetivos para os quais foi escolhido. Certo. Continua tudo muito teórico. Mas, é que tem que ser assim mesmo. A política e o poder quando tratados dessa forma são vistos como um mal necessário. Mas, quando tratados na prática se tornam tudo aquilo que abominamos, mas não vivemos sem.

sexta-feira, 28 de março de 2025

A anatomia de um golpe ou quando será que, finalmente, abominaremos golpes e ditaduras?

 

É o tempo que passa por nós ou nós é que passaríamos por ele? O tempo está em nós e em nosso entorno em três etapas: passado, presente e futuro. Apesar de que quando o passado passa e o futuro chega são ambos presente. Resigno-me a viver o meu presente, mesmo com a impressão de que estou no tempo errado. Sigo achando que deveria ter vivido o “meu” tempo social, político e cultural entre os anos 1950 e 1970, pois sinto-me cada vez mais “desblocado” neste tempo que pouco ou quase nada me diz de satisfatório. É que as coisas que gosto não são do meu presente, são do meu passado. Daí que cada vez mais me custa acreditar no futuro, pois se o presente não é nada bom, o que dirá o futuro.

Estou divagando, pois completamos o 61º “aniversário” do Golpe Civil Militar de 1964. Sempre se poderá dizer que é tempo suficiente para se esquecer a tragédia gerada por um golpe de Estado, mas é sintomático que tanto tempo depois sigamos falando em golpes, atentados aos poderes da República, intervenções militares e autoritarismos de toda sorte. É significativo que tantos insistam em deixar o passado passar. Ainda bem que temos “Ainda estou aqui” para impedir que nosso passado seja olvidado. É como diz Kari Sorjonen, “mas, o problema é que o passado nunca fica onde deixamos ele”.[1]



Passados 61 anos do golpe de 1964 temos muito a reavaliar, pois à medida que nos afastamos temporalmente do acontecimento nossa visão turva, embaça. Temos que redimensionar os eventos entre março e abril de 1964 para os dias de 2025. Reflitamos sobre a cultura política pretoriana herdada da ditadura militar, já que em nossa conjuntura temos as ameaças que nossa frágil democracia sofre, como os atos golpistas e terroristas ocorridos entre novembro\22 e janeiro\23. Por que as memórias do golpe e da ditadura militar ainda nos são tão vivas? Seria pelas feridas ainda não cicatrizadas e por termos uma sociedade e um Estado recheados de entulhos autoritários, que um débil processo de liberalização não foi competente para extrair do nosso entorno político e social?

Uma das causas para o golpe de 1964 foi a sobrecarga conflitante (e desnecessária) entre democracia e mudanças sociais, pois a sociedade e o espectro político colocavam estes dois fatores em polos opostos, quando deveriam ser os lados de uma mesma moeda. Atores políticos à direita acreditavam que pela democracia se chegaria às mudanças sociais, por isso deram o golpe e instalaram uma ditadura que durou 21 anos. Para atores à esquerda só mudaríamos pondo fim a democracia. O confronto entre as forças contrárias e favoráveis às reformas de base contribuiu para a destruição das instituições democráticas. O resultado a que se chegou bem conhecemos: democracia inexistente e nenhuma reforma social!

A liberalização política (não considero que houve redemocratização, nem justiça de transição com medidas para tratar crimes cometidos na ditadura) efetivada com a eleição de Tancredo Neves é enviesada, pois manteve no cenário político atores da ditadura, aqueles mesmo que “Ainda Estou Aqui” denuncia. O que tivemos foi um pacto, iniciado em 1974 e que resultou na tal Nova República de 1985, entre as forças políticas e a sociedade capitaneadas pelos próprios ditadores militares. O resultado foi um processo em que lenta e insolentemente se foi inserindo elementos do ritual democrático nas instituições militarizadas sem reformá-las, mantendo intocada a espinha dorsal do regime ditatorial: o poder militar.



Quando o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, derrubou o sigilo dos depoimentos de militares e civis, colhidos pela Polícia Federal (PF) no inquérito que apurou as tentativas de golpe de estado, fui atingido por um otimismo que a muito não tinha, se é que já tive. É que finalmente acessaríamos informações que historicamente são sigilosas. Enfim, saberíamos como generais se comportaram ao tramarem mais um golpe de estado em nossa querida República bananeira. Foi assim que soubemos como Braga Netto, Paulo Sérgio Nogueira e Augusto Heleno assessoraram Jair Bolsonaro na trama golpista. Foi quando se revelou que o almirante Marcos Antônio Freire Gomes e o brigadeiro Carlos Baptista Jr confirmaram que Bolsonaro comandou de perto a montagem de toda a trama golpista.

Atentemos para a grandeza da questão. Pela primeira vez, em 136 anos de República, militares de altíssimas patentes e um ex-presidente irão ao banco dos réus por crimes que envolvem uma Organização Criminosa armada que tentou abolir violentamente o Estado Democrático de Direito, através de golpe de Estado, causando dano qualificado pela violência, grave ameaça contra o patrimônio da União, com prejuízo às vítimas, além da deterioração de patrimônio tombado. Convenhamos, isso não é pouco, se considerarmos que os militares foram anistiados pelos crimes cometidos durante a Ditadura Militar.

Os depoimentos falam de encontros palacianos onde se discutia medidas para impedir a posse de Lula e consumar um golpe de Estado que faria de Bolsonaro um ditador. Entenda-se por impedir a macabra operação “punhal verde e amarelo” que pretendia assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes. Os depoimentos dão solidez à tese da condenação de Bolsonaro e seu Estado Maior golpista. O general Freire Gomes confirmou que esteve com o ex-ministro Paulo Sérgio Nogueira numa das reuniões em que a tal minuta golpista foi apresentada e ratificou que Bolsonaro propôs que ela se tornasse decreto para a implantação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), de Estado de Defesa ou de Sítio.



Um arsenal autoritário, trazido da ditadura militar e que permaneceu em nosso ordenamento jurídico político, dando lastro às prerrogativas militares, seria usado contra o processo eleitoral vencido por Lula. Outra revelação é que o general Paulo Sérgio “comprou” a ideia fajuta do bolsonarismo, de uma suposta fragilidade das urnas eletrônicas, e partiu célere em busca de indícios de fraudes. Ao não encontrar, não se retirou da conspiração golpista, pelo contrário, seguiu reforçando-a com o peso de suas 4 estrelas de general. Os depoimentos mostram quem é quem no “18 brumário” de Jair Bolsonaro. Ao retirar o sigilo, Alexandre de Moraes deu um xeque mate na defesa de Bolsonaro que não poderá dizer no julgamento que as reuniões eram inofensivas à democracia, justamente pela abundância de provas.

Ficamos ainda sabendo que o ex-ministro Anderson Torres se ofereceu, na qualidade de assessor jurídico e sabujo do então presidente, para redigir o decreto golpista e que o ex-comandante da Marinha, Almir Garnier, colocou suas tropas à disposição de Bolsonaro para que se operasse o golpe de Estado. A situação de momento é a constância de um manancial de provas que podem vir a condenar Bolsonaro e seus asseclas pelo crime de tentativa de abolição do Estado democrático de direito. Se tem elementos para indiciar os mandantes, também têm para acusar, denunciar, processar toda a camarilha golpista. É isso que espero com meu otimismo temporão, pois anistia é o ...

Certo, não temos democracia política consolidada, pois esta reúne mecanismos e práticas associados às formas de decidir em favor de interesses sociais – além das normas que regem o bom funcionamento das instituições e as atitudes que marcam a relação entre elas e a sociedade civil. E não tivemos um processo em que sociedade civil e Estado pudessem banir as prerrogativas que os militares atribuíram para si durante 21 anos de ditadura. É que lá eles seguiam a lógica da Doutrina de Segurança Nacional que dizia que o inimigo a se combater estava dentro do território nacional e não fora dele. O fato é que as Forças Armadas seguem mais preocupadas com a segurança interna do que com a externa.



Este processo que começa a ser movido contra a OrCrim bolsonarista, no âmbito do STF, pode desencadear algo que nos leve a pôr fim às prerrogativas militares, que acabe com a Anistia de 1979, que reveja os entulhos autoritários de nossa Constituição, a exemplo dos Artigos 142 e 144, etc, etc, etc. Eu disse pode, não afirmei que vai, pois otimismo não rima com ser brasileiro.

31 de março de 1964, digo de 2025.



[1] Frase dita pelo personagem Kari Sorjonen, da série “Bordertown” (2016), disponível na plataforma de streaming Netflix.


sexta-feira, 14 de março de 2025

A CULPA É DA AMBULÂNCIA

 Esta série, intitulada "A Culpa é da Ambulância", elaborada e publicada pelo "Quebrando Mitos" (quebrando.mitos) mostra de uma forma extremamente didática como se cria e se alimenta o ódio a partir da desinformação.


 

 

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