quarta-feira, 22 de abril de 2009

A fábula de uma democracia.

O artigo abaixo, publicado no Jornal O Estado de S. Paulo de 19 de maio passado, demonstra que a violência praticada no metro do Rio de Janeiro não é um caso a parte e sim regra numa sociedade onde, parodiando Sérgio Buarque de Holanda, a democracia é um lamentável mal entendido.

Uma Fábula Ferroviária
Renato Lessa*

Metonímia é a alusão à totalidade pela menção de uma de suas partes. Na expressão “a mão que empurra”, utilizada para descrever a força que precipitou alguém em um abismo, o termo “mão” substitui, na verdade, o agente responsável pela gentileza. Metonímias não são, contudo, apenas figuras de linguagem. Podem ser simplesmente figuras da vida. Se a elas aplicarmos uma prima irmã sua – no campo das figuras de linguagem –, a celebérrima metáfora, podemos dizer, metaforicamente, que há metonímias sociais. Fatos e fenômenos cotidianos podem ser interpretados como índices de configurações e processos mais amplos, revelando-se com alta capacidade de condensação dramática.


A literatura dos sobreviventes dos campos de extermínio utiliza com frequência esse poderoso recurso estilístico. É o caso pungente de Primo Levi, que descreveu em livro clássico, É isto um Homem?, a imagem de roupas infantis, penduradas por mães zelosas para secar em uma cerca de arame farpado, na véspera da partida para o campo de extermínio. A visão do detalhe evoca a enormidade, o horror do Holocausto de uma forma muito mais empática que qualquer enumeração estatística da quantidade de mortos por país, idade ou gênero, tal como preferem fazê-lo os sociômetras.


O Rio testemunhou na manhã de quarta-feira um evento metonímico. Em uma estação da zona norte carioca – Madureira – “seguranças” uniformizados e contratados pela empresa concessionária dos serviços de transporte ferroviário foram flagrados por uma câmera de televisão a surrar passageiros, com socos, pontapés e chicotadas. A cena foi placidamente assistida por um policial militar cujo comportamento evidenciava familiaridade com o que estava a acontecer. As cenas são chocantes. Sob o pretexto de fazer com que as pessoas entrassem nos vagões, para permitir a partida da composição, as supostas “forças da ordem” agrediram os usuários, além de proferir uma enxurrada de insultos racistas e sociofóbicos.


Como de hábito, a busca de elucidação do fato seguiu o curso usual: determinar os responsáveis e proceder às punições exemplares de praxe. Sobrou para os “seguranças” flagrados (houve quatro demissões).Se depender da empresa concessionária – designada não sem ironia como Supervia – é o que vai acontecer. Tendo sido ouvida, declarou-se chocada com o comportamento dos seus empregados, segundo ela, incompatível com o “código de ética” da firma, um delicioso oxímoro. Seu presidente, constrangido, amaldiçoou os meliantes sob sua responsabilidade. Foi incapaz, contudo, de deixar de transmitir a sensação de que seu compromisso prioritário é para com os acionistas da firma, e não para com a malta usuária.


Tal como no caso dos rapazes do Morro da Providência, entregues por um oficial do Exército a traficantes para que estes procedessem a corretivos apropriados, há quem identifique na “falta de treinamento” a razão da estupidez. Naquela altura, um especialista vetusto na área foi à televisão explicar que o Exército não estava treinado para lidar com segurança pública. É no mínimo curioso supor que pessoas trucidem outras pessoas por “falta de treinamento”. No caso em questão, tudo parece indicar que se trata antes da presença de certo treinamento, voltado para o castigo físico e para a violência autorizada, quando dirigida a quem está em baixo, do que de ausência. É agressão à inteligência mais primária supor que os meliantes flagrados agiram de forma improvisada.


Investigar quem são os perpetradores é importante, mas talvez não seja o que mais precisamos. É fundamental, além disso, proceder à escuta dos vitimados. Nesse particular, os relatos são elucidativos. A violência acidentalmente registrada pela câmera – uma espécie de ombudsman errático dos desvalidos – é diária e habitual. Os maus tratos aos usuários são frequentes, com uso regular da violência. O evento flagrado condensa velho e renitente hábito do uso da força ilegítima contra os segmentos populares, e esta é uma de suas dimensões metonímicas. É como se uma cultura de castigo seletivo estivesse inscrita em nosso DNA civilizatório e a dizer que os pobres são um contingente passível de receber castigo físico. São eles as vítimas preferenciais da truculência policial e os que frequentam com mais assiduidade as gavetas dos necrotérios, sob a cobertura legal dos famigerados autos de resistência (uma autorização para proceder à matança, por parte de agentes da ordem).


Há os que dizem que a democracia está firmemente consolidada no país. Apegam-se a dados que indicam o funcionamento pleno das instituições. Encantados, dedicam-se a descrevê-las e mensurá-las, com a pretensão de corrigir, por imperitas, as impressões em contrário. Com efeito, para os que, com regularidade, têm seus corpos e vidas à disposição do castigo físico contumaz, a sensação é bem outra. É fundamental, para o bem da democracia, escutá-los.


A metonímia ferroviária indica ainda o estado da arte das ferrovias brasileiras. Outrora uma malha considerável e encarada como algo de responsabilidade pública e estratégica para o País, hoje apresenta-se desconfigurada e submetida a monopólios privados, cujos gestores respondem a acionistas ferroviariamente irresponsáveis. Os ferroviários, um segmento organizado dos trabalhadores brasileiros orgulhoso de sua identidade coletiva, perdeu, pela redução da malha brasileira, centralidade e viu esfumar-se na memória suas tradições de luta e seu papel de politização por onde os trilhos passavam. A ferrovia hoje é um negócio, vitimado por choques de gestão sucessivos e por administradores demofóbicos.


As imagens da televisão mostram uma composição parada na estação de Madureira. Os usuários que estavam nas portas do primeiro vagão sofreram os afagos dos meliantes a soldo. Quando a composição se pôs em movimento, outros usuários foram atingidos, na medida em que os vagões passavam, por chicotadas. No último dos vagões, na última janela, um jovem a rir apontava para a plataforma a corneta de um extintor de incêndio a exalar espuma, dando o toque momesco à pequena tragédia do dia 15. Ao reter a fisionomia desse tataraneto dos cariocas que, em 1902, despejaram os estoques das quitandas dos subúrbios, por onde a linha de trem passava, sobre o comboio que conduzia o ex-presidente Campos Salles de volta a São Paulo ao fim de seu mandato, tive a sensação de que nem tudo está perdido.


*Professor Titular de Filosofia Política do Iuperj/UCAM e do Departamento de Ciência Política da UFF e presidente do Instituto Ciência Hoje/SBPC
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