Existem imagens que de
tão ululantemente óbvias, como diria Nelson Rodrigues, não pedem legendas. A
imagem (ao lado) que “viralizou” nas redes sociais se basta a si mesma e me fez
lembrar a ilustração (abaixo) de Jean-Baptiste Debret. Em ambas vemos a mesma
coisa: uma família de brancos na rua seguida pelos seus serviçais negros.
Na foto a família branca
(vestida com a cor oficial de uma crescente onda de despolitização conservadora
e autoritária) se dirige, no Rio de Janeiro, para a manifestação anti governo e
pró-impeachment, contra corrupção, por intervenção militar, ou seja lá pelo que
essa gente se bate, seguida pela babá (negra) que guia o carrinho com os bebês.
Notem que a mãe segura a coleira de um cachorrinho também branco. Os donos da “Casa-Grande”
foram à rua portando a moradora da “Senzala”. E é essa gente que diz lutar por
um Brasil mais justo. Eles lembram líderes da Conjura Mineira que diziam que uma
vez vitoriosos não poderiam acabar com a escravidão, pois do contrário quem
iria trabalhar na extração do ouro, no plantio da cana-de-açúcar ou nos
serviços domésticos?
O caro leitor interpretará
a imagem da maneira que bem quiser, mas lembre que quem bate na panela não é a
moça de branco e quem protesta é a “sinhá” que até se preocupa em olhar para
seus filhos, mas que não se dá ao trabalho de carrega-los. Os donos da “Casa-Grande”
não suportam a ideia de ter que pagar direitos trabalhistas para a moça, de
branco, que veio da “Senzala”. Deve ser por isso que lhes negam o direito do
descanso dominical.
No século XIX, o
pintor francês Jean-Baptiste Debret veio ao Brasil com a Missão Artística
Francesa que fundou, no Rio de Janeiro, a Academia Imperial de Belas Artes. Aqui,
Debret pintou quadros retratando paisagens e o cotidiano dos brasileiros. O
quadro ao lado é o “Passeio com a família”, publicado em “Viagem Pitoresca e
Histórica ao Brasil”. E o que nele se vê? Mesma coisa da imagem do domingo 13
de março. O senhor vai passear com sua branca família trazendo consigo um
séquito de negros. Note que uma das escravas carrega um bebê tal qual a babá
negra do século XXI.
Vi numa rede social alguém
dizer que não dá para discutir direitos sociais com quem ainda não aceita a
“Lei Áurea”. Pois é, não dá para discutir sobre a transformação de nossa
realidade politica, social e econômica com uma gente que vai participar de
manifestações levando consigo os excluídos de sempre. Não posso tratar das
coisas da politica, sequer do fato que é preciso reformar nossas instituições para
tentar controlar a descontrolada corrupção, com pessoas que reproduzem em casa
e fora dela uma ancestral desigualdade social, racial, econômica.
Em outra imagem, uma
senhora, de verde-e-amarelo lógico, branca e loira, toma champanhe em uma taça.
Madame fez questão de mostrar o símbolo de seu status e de seu poder. Estaria madame
disposta a ir às últimas consequências para ver na Presidência da República
alguém acostumado aos bons vinhos e jantares? Parece que sim, do contraria não
estaria sacrificando seu regabofe dominical para xingar a presidente,
constitucionalmente eleita, da República. Madame cansou de ter um caboclo
presidente como diria Herbert Viana. Notem que outros abnegados pelas causas da
politica brasileira também bebem de um champanhe que descansa em um balde de
gelo que bem poderia ser de prata. Tinha razão Cazuza quando dizia que a
burguesia fede, apesar de ter muito dinheiro para comprar perfumes.
E o que dizer da
singela imagem do barquinho que ia mesmo que a tardinha ainda não tivesse caído?
A Globo News exibiu demoradamente a imagem de um iate singrando os mares
cariocas ostentando a faixa “fora Dilma”. É um verdadeiro negócio de ocasião.
Enquanto se divertem, cariocas endinheirados pedem para alguém por a presidente
eleita para fora. São nesses dias de estultice politica que um Millôr Fernandes
faz tanta falta, pois só mesmo ele poderia se sair com uma frase curta e franca
sobre a mãe de todos os paradoxos que essas imagens encerram. Lembrei-me de
Karl Marx que afirmava que a burguesia é capaz de tudo para defender seus
interesses até mesmo lutar contra o sistema politico que lhe garante ser dona
dos meios de produção.
Enquanto sinhôs e sinhás
desfilam suas belezas pelas manifestações, indignados por que um governo se
atreveu a promover alguma justiça social na ordem tupiniquim, a elite politica,
gerada entre a Casa-Grande e a Senzala, se despe de qualquer recato republicano
e/ou democrático e se lança ensandecida, numa luta de vida e morte, para
impedir que nas próximas eleições o caboclo presidente volte a frequentar os
corredores dos palácios e a compartilhar dos bons vinhos.
É que o Sinhô não quer
mais ver o filho da escrava sentado naquela cadeira, daí pediu aos seus filhos,
formados em quatrocentonas entidades de ensino, para aprisionarem o presidente Macunaíma.
Um dos filhos togado perguntou que motivos alegariam para enquadrá-lo. O senhor
disse que qualquer motivo é bem vindo. Pode ser a suspeição da vontade (não
realizada) de compra de um imóvel, pode ser uma quantia recebida pelo caboclo
presidente para dar uma palestra, pode ser o fato de a esposa cabocla ter ido
olhar as obras de um imóvel. O Senhor disse a seus filhos togados que fossem
perguntar ao dono do império das comunicações que argumentos utilizar.
Um dos filhos lembrou
que não saberia instrumentalizar o processo contra o presidente jararaca por
não ter lido os livros dos filósofos que seus professores recomendavam. Ele disse
que não sabia diferenciar Friedrich Engels, um dos teóricos que formatou o socialismo
científico no século XIX, de Friedrich Hegel, um dos expoentes do chamado
idealismo alemão. O senhor disse que eles poderiam tirar as duvidas todas que
tivessem com aquele ex-presidente que foi professor de sociologia.
As sinhás e senhorios
que vão as ruas aos domingos não se conformam em ter perdido mais uma eleição.
É que essa gente não suporta a ideia de saber que parte dos impostos que pagam
vai para os programas sociais do governo federal. Essa gente não está
preocupada com a corrupção, nem com o suprapartidário assalto aos cofres da
Petrobras. Tal qual os militares e civis, que deram o golpe de 1964, usam o
discurso piegas, pretensamente nacionalista, de salvar a pátria da corrupção
para maximizarem seus interesses mais comezinhos.
A “Casa-Grande” se
comporta como se estivesse na segunda metade do século XIX participando de
organizações contrárias à abolição da escravidão. Elas querem impeachment de
Dilma, golpe e intervenção porque tiveram seus privilégios atacados e porque as
classes que ficam ao final do alfabeto passaram a ter acesso a coisas como
educação superior, moradia e consumo. E isso é inadmissível para quem sempre se
alimentou das desigualdades sociais que historicamente tivemos.
Março/2016.
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