Em 1945 os soviéticos
foram os primeiros a entrar na Berlim destruída pelos combates da 2ª guerra. Enquanto
oficiais caçavam nazistas, soldados estupravam mulheres. Cerca de dois milhões
de alemãs foram violentadas. Stálin nada fez, pois os russos viam o estupro
como uma “necessidade do homem” e como forma de subjugar o inimigo já
derrotado. Na Guerra do Vietnã, soldados americanos costumavam estuprar as vietnamitas.
O governo e a sociedade americanos fecharam os olhos para esse estado de coisas.
É que várias sociedades, cada uma a seu modo, aceita o estupro.
Parte de nossa
sociedade tem um jeito peculiar de lidar com a violência contra a mulher. Em 2014,
o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostrou que 26% dos
brasileiros acreditam que a “mulher que exibe seu corpo merece ser atacada”. Vimos
com provas, não com convicções, que o estupro é legitimado entre nós. O IPEA demonstrou
que muitos creem que “se a mulher se comportasse, haveria menos estupros”. Agora,
o Fórum Brasileiro de Segurança Publica (FBSP) trouxe dados atualizando nossa mentalidade
obscura. Como nada é tão ruim que não possa piorar, vemos que 30% dos
entrevistados concordam que a “mulher que usa roupas provocativas não pode
reclamar se for estuprada”. Pior, é que 37% aceitam a ideia anacrônica, tosca, de
que “mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”.
Envergonha-me compartilhar
minha nacionalidade com pessoas que fingem não saber que é crime tentar ou
manter relações sexuais com uma mulher sem que ela consinta. É como se a mulher
gostasse de ser violentada e provocasse o homem para que ele lhe atacasse. A
ideia de que um padrão de comportamento, determinado à mulher pela sociedade,
evita que ela seja estuprada é de uma estultice colossal. Quase 40% dos
brasileiros dizem: “dê-se ao respeito e não serás estuprada”. Assusta-me saber
que há quem concorde com tal parvoíce. Com temperaturas tão altas, a mulher tem
que usar roupas compostas para não ser violentada?
O FBSP conclui que existe
um discurso socialmente aceito que considera que a mulher só é vítima de
agressão sexual por que provocou o homem. Isso se comprova com 30% das mulheres
entrevistadas concordando com o raciocínio que coloca nelas a culpa pela
violência sexual. Ou seja, vítimas em potencial aceitariam serem
responsabilizadas pelo estupro. Nada a estranhar, pois o machismo não é
exclusivo do homem. É comum mães questionarem suas filhas se de alguma maneira
elas não contribuíram para serem estupradas.
Em 2014 o IPEA
revelou que 82% dos brasileiros concordaram que “o que acontece entre o casal
em casa não interessa aos outros”. Seguimos achando que em briga de marido e
mulher não se mete a colher. A maioria de nós entende que não se deve
intrometer no caso do marido espancar sua esposa desde que isto aconteça no santo
recesso do lar. O primado do homem sobre a mulher ainda é aceito por nós.
Seguimos sendo os trogloditas de sempre!
Assisti o
documentário “Half the sky” (O céu pela metade), produzido para televisão
americana, filmado em países como Camboja, Índia, Somália e Afeganistão, que
trata de mulheres vítimas de coisas como tráfico de pessoas, violência sexual,
fome, guerra, escravidão. É desesperador ver que, em nome da tradição, mulheres
são estupradas e prostituídas pelos seus pais e maridos. Mostra, por exemplo, a
depauperante tradição da infibulação. Um hábito medieval desprovido de
racionalidade.
No filme vi um mundo
que nós, brasileiros, queremos ignorar. Sempre se poderá dizer que quase tudo que
nele se vê não acontece aqui. É verdade, não acontece, pois nos deixamos influenciar,
de leve é bem verdade, por valores da democracia, em que pese uma cultura
autoritária que nos faz saudosistas da ditadura militar. Estamos longe de uma
Somália ou de um Afeganistão, mas não podemos nos comparar aos países que mais
evoluíram em termos de direitos sociais e na redução das taxas de desigualdade.
Estamos, sim, bem mais próximos de uma Índia com seus hábitos que desumanizam a
mulher. Vejam que aqui, como lá, ainda se pratica o tal estupro coletivo, tal
qual faziam soldados russos e americanos.
IPEA e FBSP concluem
que a brasileira ainda não se equiparou econômica, política e socialmente em
relação ao brasileiro. O IPEA viu que 65% dos entrevistados concordam que
“mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar”. Muitos
ainda acham que “só um tapinha não dói”. Houve um erro na apresentação dos
dados do IPEA. Mas, isso não diminui o sentido nem retira a seriedade do estudo,
pois a questão não é apenas quantitativa. Importa menos se duas mil ou dois milhões
de pessoas concordam que é a mulher quem provoca o estupro. Enquanto tivermos
um único brasileiro pensando assim, temos muito com que nos preocupar. Não
basta supor que “nada tenha haver com isso já que não concordo com essas
opiniões”. Se onde vivo têm pessoas legitimando o estupro tenho, sim, haver com
isso.
Como exemplo,
vejamos o caso da Paraíba onde a realidade confirma os dados do IPEA e do FBSP.
O Centro da Mulher 8 de Março, de João Pessoa, nos mostrou que, por mês, sete paraibanas
são estupradas. A ONG, que acompanhava mulheres violentadas, dizia que entre o
início de 2010 e novembro de 2015 foram registrados 556 estupros na Paraíba,
sendo que 65,4% dos casos foram contra crianças e adolescentes. Sempre
lembrando que os números são ainda maiores, pois nem todas as vítimas vão à polícia.
Será que somos tão diferentes da realidade vista em “Half the sky”?
E para quem acha que
só mulheres lindas, sensuais, que andam com trajes minúsculos, são estupradas informo
que metade das vítimas da violência sexual são menor de idade. Para o Programa
Bem-me-quer de São Paulo, mais da metade das vítimas de estupro, em 2013, tinha
até 11 anos de idade. Isso se alinha ao estudo do IPEA que mostrou que crianças
seguem sendo alvos preferenciais dos estupradores e que a maioria dos casos contra
crianças acontecem mesmo é no ambiente familiar. Se você é um dos que acha que é
a mulher quem pede para ser estuprada sugiro que tente perceber que por trás de
sua mãe, sua irmã, sua filha, sua esposa ou sua namorada existe uma mulher que,
com certeza, não quer ser estuprada.
Outubro/2016.
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