quinta-feira, 19 de junho de 2008

Imprevidência no Providência

Na sessão Tendências/Debates da Folha de São Paulo de 19/06 o cientista político Jorge Zaverucha publicou uma lúcida avaliação sobre as fragilidades de nossa democracia, especificando a problemática presença das Forças Armadas no morro da Providência no Rio de Janeiro. Vale a pena ler.

DESDE DEZEMBRO de 2007, o Exército vem sendo usado partidariamente no morro da Providência (Rio) pelo governo federal com a conivência do governo estadual. A justificativa oficial é estar em vigor uma ação subsidiária do Exército. Ressalte-se que construir estradas e pontes em benefício de todos é diferente de o Exército ser usado para fim particular. Internamente, todavia, o assunto é considerado uma operação de garantia da lei e da ordem, o que demandaria um decreto presidencial para a movimentação de tropas.

Essa medida enfraquece a já frágil democracia brasileira. Espanta que tamanho desatino político tenha demorado tanto tempo a ser percebido pela sociedade civil, pelo Congresso Nacional e pela Alerj. Foram necessárias três vítimas para que a questão viesse à baila. As advertências teóricas contra o uso de militares federais foram desconsideradas. Infelizmente, há os que acham que somente o observável deve ser considerado conhecimento válido.

A novidade não é a presença do Exército nas favelas fazendo atividade de segurança pública. O crescente processo de militarização da segurança pública é "per se" nova amostra da incapacidade de criarmos um Estado moderno sob o ponto de vista das instituições coercitivas. Inexiste no Brasil uma clara separação entre a competência e a identidade da força que é responsável pela guerra (Forças Armadas) e aquela que mantém a ordem interna (Polícia).

A inovação no morro da Providência reside no uso do Exército para ajudar na execução de um projeto político partidário capitaneado pelo senador Marcelo Crivella, candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro. E que ele pertença ao mesmo partido do vice-presidente da República (PRB). A aparência de democracia é uma grande ameaça à democracia brasileira. O projeto Cimento Social é parceria entre o Ministério das Cidades e o da Defesa no valor de R$ 12 milhões.

Trata-se de um retrocesso institucional típico de sociedade pretoriana. Fica-se a esquadrinhar quais interesses são esses que levaram nossas autoridades a bancar o custo político dessa ação militar. Em um contexto de baixa credibilidade dos nossos políticos, tisnar a imagem da instituição laica mais acreditada pelos brasileiros, as Forças Armadas, é uma atitude, no mínimo, temerária.

As Polícias estaduais são mal-equipadas e maltreinadas e já estão significativamente contaminadas internamente. Não são mais capazes de dar conta de sua atribuição de manter a ordem pública.

Esse sistema de duas polícias em um mesmo espaço geográfico fazendo ciclos parciais de policiamento só existe no Brasil. Em vez de extinguir esse falido modelo, os últimos governos federais, e o atual não é exceção, optaram pela alternativa mais fácil: manter o status quo. E, para remedar o problema, acionam cada vez mais o Exército em funções de policiamento.
Só que, dessa vez, o governo Lula deu um passo ainda mais atrás: pôs em prática a promiscuidade político-partidária.

É constrangedor ouvir as repetidas declarações do ministro da Defesa comparando a utilização das tropas brasileiras na missão de paz da ONU no Haiti com o emprego delas em solo brasileiro. As regras de engajamento são distintas.

E, mais, o ministro Nelson Jobim persiste na imprevidência. Tenta transformar em desvio de conduta individual um problema que é de natureza institucional. Em vez de trabalhar para a imediata retirada das tropas militares do morro da Providência, defende o indefensável. Além do risco do poder transversal (e não paralelo!) dos traficantes embrenharem-se nas fileiras castrenses de modo crescente.


JORGE ZAVERUCHA , doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). É autor de "FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia", entre outras obras.

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