Durante a Guerra Fria, EUA e URSS justificavam suas atitudes beligerantes pela existência de um inimigo pronto a destruí-los. Era imperativo se prevenir e quanto maior a área de influência que cada um deles possuísse melhor seria a sua força; daí as intervenções na América Latina e Caribenha, no Leste Europeu e no Vietnã, Afeganistão, Coréia, etc. Era, também, necessário investir em armamentos – que, como se sabe, produzem um alto lucro para quem os fabrica e para quem os utiliza. Porém, com o fim da Guerra Fria e a derrocada do socialismo real a geopolítica mundial mudou e os EUA tiveram que encontrar novos adversários, senão como justificar aos seus contribuintes os constantes aumentos de impostos para aplicar nos crescentes gastos militares?
O Oriente Médio ganhou o status de fornecedor por excelência de adversários, devido as suas conturbadas relações políticas, a grande quantidade de petróleo lá existente, ao fundamentalismo religioso, ao terrorismo, etc. Um grande inimigo foi Saddam Hussein que, tendo os americanos como aliados na guerra contra o Irã, resolveu depois desafiá-los. Isto não significa que ele estivesse certo – Saddam foi um ditador genocida. Mas, ele foi um inimigo útil e que bem se encaixou as necessidades americanas. Era preciso, então, satanizar Saddam e transformá-lo em o anticristo que queria acabar com a civilização ocidental. Fouad Ajami, especialista em Oriente Médio na Universidade de Jonhs Hopkins (Washigton) disse certa vez que um dos problemas foi “reconstruir Saddam, deixando-o maior do que de fato ele era e depois ter que lidar com o monstro criado através da retórica”.
É preciso filtrar os discursos. Um presidente dos EUA (democrata ou republicano, não importa) jamais justificará uma invasão pela necessidade de petróleo ou porque as indústrias bélicas norte-americanas - que financiam campanhas políticas - assim exigem. É preciso legitimar as ações perante a opinião pública. O discurso de salvar a humanidade da sanha assassina de um ditador é socialmente aceito. De fato, é preciso combater os ditadores! No entanto, na lógica das relações internacionais sempre se pondera sobre interesses e custos, antes mesmo de se considerar questões humanitárias.
Mas, Saddam morreu, e urge ter novos inimigos. Ditadores, de preferência. Temos opções: o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, ou o da Coréia do Norte, Kim Jong II; Hugo Chávez (em marcha batida para transformar a Venezuela em uma ditadura com verniz socialista). Enfim, os chamados chefes do “eixo do mal”, como prefere alcunhar Bush Jr.
Existem vários tipos de ditadores e uns servem e outros não a determinados propósitos nas relações políticas transnacionais. Vejamos o caso de Ahmadinejad. Ele reencarna muito bem o papel que Saddam encenava e é anti-semita, autoritário, histriônico, fundamentalista, homofóbico, apóia (para dizer o mínimo) atentados terroristas, defende o uso da energia nuclear, duvida da existência do holocausto – para ele, “nada mais do que uma invenção de Israel” que, inclusive, “deveria ser riscado do mapa” (SIC). Sem contar, que preside o quinto maior produtor de petróleo do mundo. Enfim, ele é a soma de todos os medos do Ocidente. O Jornal Daily News assim se dirigiu a ele: “Nossa mensagem para o louco iraniano: vá para inferno!”. Ou seja, este é um ditador que serve aos propósitos já enumerados.
E tanto serve que Wesley Clark, ex-comandante militar dos EUA, em um artigo intitulado “A próxima guerra” apontou o Irã como a intervenção seguinte a que por ora ocorre no Iraque. O terreno vem sendo engenhosamente preparado. Bush Jr. já previu um “holocausto nuclear” promovido por Teerã e o ministro das relações exteriores francês, Bernard Kouchner, afirmou que “temos que nos preparar para o pior, e o pior é a guerra”. Os países sunitas, opostos aos xiitas, tratam o Irã como uma ameaça para um (im) provável processo de paz no Oriente Médio. Alegam, com a conivência dos EUA, que Ahmadinejad arma a Al-Qaeda e a resistência iraquiana.
Os americanos insuflam a opinião pública internacional contra os aliados do Irã, alçados a condição de inimigos da nova ordem mundial globalizada: a Síria, o Hezbollah (Líbano) e o Hamas (Faixa de Gaza) acusando-os, não sem razão, de promoverem o terrorismo se não com atos, pelo menos com palavras. Não será surpresa se em breve for “descoberto” na Venezuela de Chávez, por exemplo, algum “conluio terrorista” entre Caracas, Teerã e alguma milícia de jovens dispostos a dar a vida para “destruir o grande satã” – leia-se EUA.
Justificativas para o próximo e lucrativo conflito vão sendo dadas e a melhor, quase imbatível, é a da ameaça nuclear. Se o Irã detém tecnologia suficiente para produzir armas nucleares, tanto melhor para os EUA que terão seu caminho facilitado. Caso contrário, os estrategistas militares terão de encontrar outra justificativa. Poderão, inclusive, mentir desbragadamente como já o fizeram. Hoje se sabe que o Iraque não detinha armas químicas que justificassem uma intervenção armada.
Além de Ahmadinejad, temos o presidente do Turcomenistão - Gurbanguly Berdymukhammedov. Conhecido pela repressão sistemática aos seus adversários, sua presença em solo norte-americano não foi sentida, sequer noticiado pelos jornais. Este é um ditador que não serve a nenhum propósito. Temos mundo afora ditadores em graus diferenciados de importância.
As tentativas de Ahmadinejad em se aproximar de outros países são sempre vistas com muita cautela. À exceção de Hugo Chávez, e seu fiel escudeiro Evo Morales, que cultivam relações que vai da diplomacia a criação de um fundo de US$ 1 bilhão para cooperação industrial, passando pela assinatura de acordos nas áreas energética, comercial e agrícola e até pela compra de armas e tecnologia militar. O governo brasileiro, por exemplo, reagiu de um modo glacial a proposta de Ahmadinejad de visitar o Brasil – seria temerário receber o mais novo anticristo do mundo.
Mas, nem o Itamaraty e nem o presidente Lula viram dificuldades em convidar o presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, para fazer uma visita oficial ao Brasil. Nazarbayev é conhecido pelas violações aos direitos humanos que seu governo pratica. Está no poder desde 1991, com uma oposição diminuta, e reformou a constituição para poder se reeleger indefinidamente. Mas, como o Cazaquistão é um país rico em petróleo, cultiva boas relações com os EUA e a Rússia e seu ditador não desafia países, o Brasil acaba de elegê-lo o seu mais novo parceiro. As favas com os pruridos democráticos! Acima de tudo estão as tais razões de Estado.
Existem até os ditadores aposentados que gozam da proteção de países poderosos. Foi, até pouco tempo atrás, o caso do ex-presidente do Peru Fugimore, que viveu por muitos anos protegido no Japão graças a uma dupla nacionalidade. E é a circunstância de Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier, um sanguinário ex-ditador do Haiti entre 1971 e 1986, que vive exilado na França. Pelas suas mãos, milhares de haitianos foram assassinados, mas a França nada fez ou faz e finge ignorar que Baby Doc articula-se para voltar ao Haiti. A zelosa comunidade internacional tomará alguma atitude? Temo que não, posto que Baby Doc não cria maiores embaraços a ONU, por exemplo.
Temos o exemplo de Mianmá que é governado por um regime militar ditatorial desde 1962. A última eleição parlamentar lá realizada foi em 1990. Foi preciso que monges budistas saíssem às ruas, e as imagens ganhassem o mundo, para que os países ricos resolvessem se pronunciar. Os EUA exigiram que o governo interrompesse a repressão das forças de segurança contra os manifestantes. Mas, a junta militar de Mianmá respondeu com o anuncio de um toque de recolher, colocando mais tropas nas ruas, aumentando a repressão. Essa é outra ditadura desimportante.
O mundo das relações políticas internacionais não é exatamente a ambiência de uma diplomacia de moral ilibada. Determinados fatos são sintomáticos pela carga de incoerência que demonstram. Enquanto os EUA demonizam o Irã e seu presidente, empresas norte-americanas abrem subsidiárias no Golfo Pérsico para poder realizarem seus negócios. Bush Jr. e Chávez atacam-se mutuamente, mas os EUA continuam sendo o maior comprado do petróleo venezuelano tendo, até, um desconto camarada de dois dólares por barril. É devido a este estado de coisas que Frank-Walter Steinmeier, ministro das Relações Exteriores da Alemanha, afirmou que “os insistentes pedidos americanos e franceses por mais sanções contra o Irã carregam um bocado de hipocrisia”.
Professor do Curso de História da Univ. Estadual da Paraíba desde 1993. Mestre em Ciência Política-UFPE e Doutorando em Ciência da Informação-UFPB. Especialista em História do Brasil, com ênfase na Era Vargas e na Ditadura Militar, na democracia e no autoritarismo. Autor dos livros "Heróis de uma revolução anunciada ou aventureiros de um tempo perdido" (2015) e “Do que ainda posso falar e outros ensaios - Ou quanto de verdade ainda se pode aceitar” (2024), ambos lançados pela Editora da UEPB.
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