É preciso entender que esse estado de coisas e o próprio regime militar são obstáculos à melhoria das relações entre civis e militares no Brasil.
Celso Castro, pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), conduziu uma pesquisa instigante. Ele consultou vários estudiosos sobre relações civil-militar no Brasil e 88% dos entrevistados concordaram com a seguinte assertiva: "Os militares devem explicações e desculpas públicas por atos praticados durante o regime militar".
Castro levantou no CNPq 46 doutores que estudam as Forças Armadas (desses, 39 responderam a seu questionário). Isso aponta a relevância desse tipo estudo, ao contrário do que se quer crer no meio acadêmico brasileiro – 61% dos entrevistados disseram que essa temática é vista com desconfiança nas universidades. Em que pese 74% dos entrevistados terem dito que as relações civil-militar melhoraram nos últimos dez anos, 72% garantem que os militares se consideram superiores aos civis o que só dificulta o trato das questões relativas à ditadura militar.
Maria Celina D'Araújo, também pesquisadora do CPDOC/FGV, ao discutir os "modelos institucionais" das Forças Armadas, demonstra que existem "três grandes matrizes" norteadoras do comportamento dos militares: o positivismo (a idéia das Forças Armadas como um "lugar de saber"); o corporativismo e o projeto de poder da era Vargas; e o papel da caserna como um espaço de discussão política. Após a ditadura militar, e em que pese à chamada profissionalização dos militares, sobreviveu fortemente o corporativismo. O que explica a insistência da Aeronáutica em manter o controle sobre o tráfego aéreo; o fato de a Justiça Militar continuar intacta, com as mesmas funções e prerrogativas da época da ditadura; a forte intervenção do Exército nas questões de segurança pública; etc.
Voltando a tratar da solenidade de lançamento do livro, devo pontuar as presenças e as ausências. Ela foi marcada pela emoção dos parentes das vítimas e pela presença de ministros que foram perseguidos na ditadura, como Dilma Roussef e Tarso Genro. Um momento que demonstrou que as feridas não cicatrizaram foi quando Elzita Santa Cruz (uma senhora de 94 anos) pediu, chorando, a Lula que lhe permita antes de morrer enterrar seu filho desaparecido desde 1974.
Mas, as ausências foram bem mais significativas do que as presenças. Sintomaticamente, os comandantes do Exército (General Enzo M. Peri), da Marinha (Almirante Júlio Soares de M. Neto) e da Aeronáutica (Brigadeiro Juniti Saito) não compareceram. Eles foram convidados pela própria presidência da República, ou seja, deixaram de atender a um convite de seu Comandante-em-Chefe. Óbvio, a ausência foi uma das maneiras que o alto comando castrense encontrou para demonstrar o quanto os meios militares ficaram irritados não só com o livro, mas com o fato do governo ter assumido oficialmente os atos ilícitos por eles cometidos e jamais avocados.
Sugestivo foi o discurso de Nelson Jobim que, fitando o Presidente, afirmou como se estivesse enviando aos notórios ausentes uma mensagem: "Afirmo que estamos em um processo efetivo de conciliação e que as Forças Armadas brasileiras recebem este ato como absolutamente natural. Não haverá indivíduo que possa a isto reagir e, se houver, terá resposta". (Grifos meus).
Foi vexaminoso ver Jobim tentando enquadrar as Forças Armadas. Não tanto pelo discurso em si, mas pelas previsíveis conseqüências. Primeiro, os comandantes militares não se pronunciariam. Em seguida, consideraram o discurso uma "ameaça e uma afronta desnecessária" e que não havia necessidade do tom agressivo, pois a solenidade em si já era um ataque. Por fim, o Comando do Exército declarou que "todo fato histórico tem diferentes interpretações" e que a "eventual revisão da Lei da Anistia representaria um retrocesso no atual momento". E, no costumeiro tom ameaçador, arrematou: "Não há Exércitos distintos. Ao longo da história, temos sido sempre o mesmo Exército de Caxias". (Grifos meus).
Ou seja, apelando para o espírito corporativo, o que se quis demonstrar é que o mesmo Exército que lastreava a ditadura é o que assegura a democracia e, portanto, não faz sentido punir este pelos crimes cometidos por aquele. E, o que é grave, se referiu ao calcanhar de Aquiles do processo de transição: a Lei da Anistia, que atingiu a todos indistintamente.
Se isto vai ou não criar constrangimentos nas relações de Jobim com os oficiais não é a questão. Resta saber o nível da gravidade desses constrangimentos e se eles podem vir a contribuir para que o ministro da defesa seja "convidado" a sair do cargo pelas imposições castrenses, como foi possível ver nos casos dos ex-ministros José Viegas e Valdir Pires.
Em um movimento pendular, que ora cobra responsabilidades, ora afaga, e tentando não ferir as suscetibilidades castrenses, Lula afirmou que os comandantes militares não são responsáveis por atos praticados na ditadura e diplomaticamente pediu (não seria o caso de ordenar?) que caso ainda houvesse arquivos em dependências militares que estes sejam entregues ao governo.
A CEMDP afirma que, em 1993, o Ministério da Justiça recebeu relatórios das Forças Armadas tratando de mortos e desaparecidos e defende que os autores desses relatórios devem prestar depoimentos. Em março deste ano, um relatório da CI registrou que as Forças Armadas informaram "ter destruído, com base na legislação, todos os documentos das operações militares" (SIC). Mas, que legislação seria essa que autoriza a destruição de documentos se existe a lei do sigilo eterno? É temerária a demora para se abrir os arquivos, pois além dos efeitos destrutivos que só o tempo pode provocar, existem os efeitos causados pelo fogo criminoso, como foi possível ver no episódio dos documentos, encontrados nas dependências de uma base aérea da Bahia em 2004, semi-destruídos pelo fogo comprovadamente intencional.
Ainda dentro da lógica de cobranças seguidas de afagos o Secretário Nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, afirmou que não aceitaria a informação de que arquivos foram queimados. Mas, no lançamento do livro, declarou que as Forças Armadas contribuem hoje significativamente na defesa dos direitos humanos – como se não fosse ele próprio que estivesse à frente das cobranças feitas no livro.
As reclamações do Alto Comando das Forças Armadas são tamanhas. Afirmam que o livro é extemporâneo e que não traz nenhum dado novo. Consideram um acinte o seu lançamento e o fato de ser assumido como documento oficial. Apontam como falha central o fato de só considerar a versão de uma das partes envolvidas. Acusam que a única intenção dos seus autores é fomentar a "indústria da indenização de criminosos políticos".
Tentando minimizar as conseqüências de todo esse imbróglio, o governo enviou recentemente ao Congresso Nacional uma proposta para o orçamento de 2008 que aumenta de R$ 6,5 bilhões para R$ 10 bilhões os gastos com defesa. Quer agradar os militares naquilo que lhes é mais caro, além das questões salariais, óbvio.
Mas, pelo visto o gesto não serviu para acalmar os militares que retaliaram numa outra questão sensível. O Clube Militar do Rio de Janeiro entrou com um pedido de liminar no TRF/RJ para caçar a promoção do ex-guerrilheiro Carlos Lamarca e a pensão para a sua viúva. O TRF/RJ acatou o pedido e suspendeu a decisão da CEMDP que promoveu Lamarca de capitão a coronel do Exército, concedendo à sua viúva pagamento de vencimentos no valor de R$ 12.152,61 (o mesmo que recebe um general-de-brigada) e uma indenização de quase cem mil reais. Para os militares, Lamarca não passa de um desertor criminoso e não mereceria nenhuma honra militar. E a juíza responsável pelo parecer final afirmou que Lamarca não tem direito aos benefícios porque desertou da unidade do Exército onde servia e que "não foi atingido por atos de exceção consubstanciados em atos institucionais ou complementares".
Note-se que o mesmo TRF-RJ que acatou a liminar é o que, em 2004, julgou o recurso da AGU como foi demonstrado na segunda parte desse artigo.
A que se cuidar, ainda, de mais uma questão espinhosa. O problema da Lei de Anistia .
No lançamento do livro, membros do governo negavam de forma veemente que haveria algum tipo de revanchismo na iniciativa. Mas, a pretensão exata do governo não ficou clara.
Lançar um livro que aponta sem evasivas e subterfúgios as culpas dos militares, afirmando que "crimes contra a humanidade foram cometidos", significa exatamente o quê? Que militares responsáveis por torturas e desaparecimentos de presos políticos devem ir a julgamento?
Se este raciocínio é correto, poderá, em oposição, a caserna reivindicar que as ações da guerrilha (assaltos a bancos, assassinatos, seqüestros, roubos, etc) sejam igualmente tipificadas como crime e seus patrocinadores tenham que ir para o banco dos réus?A Lei da Anistia de 1979 foi uma garantia que os militares tiveram para aceitar deixar o governo ordeiramente. O processo de liberalização que nos levou de uma ditadura militar até a Nova República dependeu disso. A questão não é se se deve ou não remexer nos segredos do período militar, deixando que os esqueletos sem identificação saiam dos armários, mas se o governo e a sociedade civil estão dispostos a enfrentar o ônus de entrar em rota de colisão com aqueles que têm seus bons motivos para querer que segredos e sigilos continuem bem guardados ad indifinitu.
Professor do Curso de História da Univ. Estadual da Paraíba desde 1993. Mestre em Ciência Política-UFPE e Doutorando em Ciência da Informação-UFPB. Especialista em História do Brasil, com ênfase na Era Vargas e na Ditadura Militar, na democracia e no autoritarismo. Autor dos livros "Heróis de uma revolução anunciada ou aventureiros de um tempo perdido" (2015) e “Do que ainda posso falar e outros ensaios - Ou quanto de verdade ainda se pode aceitar” (2024), ambos lançados pela Editora da UEPB.
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