segunda-feira, 13 de outubro de 2008

O EXÉRCITO DEVE AJUDAR NA SEGURANÇA DAS CIDADES?

Um fórum de discussão ocorreu ontem (13/09/2008) no site da REVISTA ÉPOCA. O debate iniciou-se com a seguinte questão: O EXÉRCITO DEVE AJUDAR NA SEGURANÇA DAS CIDADES?
Além das pessoas que podiam entrar na discussão, votando e opinando, tínhamos dos debatedores convidados. Um a favor e outro contra a propositura inicial.
A favor da utilização do Exército na segurança das cidades estava Rubem Cesar Fernandes e Contra a utilização do Exército na segurança das cidades estava Jorge Zaverucha.

Abaixo reproduzo a declaração inicial de ambos para que o caro leitor possa tirar suas próprias conclusões. Antes, porém, reproduzo a opinião que coloquei no citado fórum.


"Entendo porque as Forças Armadas atuam na ordem política e social de um país em tempos de ditadura. Mas, por que fazê-lo em tempos de democracia? O fim da ditadura militar no Brasil pouco alterou os papéis desempenhados pelas instituições coercitivas e o que vemos é o Exército fazendo o papel de polícia. Antes da eleição do 1° Turno, travou-se, aqui em Campina Grande, um debate sobre esta questão. O Ministério Público questionou o sentido de o Exército vir para as ruas no dia da eleição, sob pretexto de oferecer segurança aos eleitores. Em muitos países as Forças Armadas são força auxiliar das instituições responsáveis pelo segurança pública. No Brasil é justamente o contrário. Se tivermos uma situação de tensão ou mesmo conflito entre instituições, a quem as polícias militares irão atender? Pois, devem sujeitar-se aos Governadores, mas tem que prestar assistência ao Exército. É possível agradar a dois senhores ao mesmo tempo?"


Exército não é polícia – Jorge Zaverucha (Prof. associado da UFPE, onde dirige o Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas e da Criminalidade - NICC. Graduado em Economia pela UFPE, mestre em Ciência Política pela Hebrew University de Jerusalém e doutor em Ciência Política pela University of Chicago.)

A separação das competências institucionais entre polícia e Exército surgiu com o advento do Estado moderno. E foi mantida pelos regimes democráticos. No Brasil, todavia, tais competências estão constitucionalmente imbricadas. Embora 62 Emendas Constitucionais tenham sido aprovadas desde 1988, nenhuma delas alterou esta inaceitável situação sob o ponto de vista democrático. Com reflexo nas ações de segurança pública.
Em democracias, a polícia lida com adversários; o Exército com o inimigo. Polícia procura administrar conflitos de natureza social. Exército defende a soberania do país diante do inimigo que deve ser aniquilado. Por isso mesmo, as doutrinas, o armamento, a instrução e o treinamento da Polícia e do Exército são distintos. Como disse certa vez um ex-ministro do Exército (1985-1990): "Nós não somos treinados pra colocar algemas. Quem visita um quartel não acha depósito de algemas. Acha pavilhão de tiro".
Constato com preocupação um crescente clamor popular no sentido de que a atuação do Exército confunda-se com a atividade de polícia. E esta cada vez mais vai se militarizando (o Bope no Rio de Janeiro é exemplo disto). Há, simultaneamente, um duplo processo em andamento: o de policialização das Forças Armadas e o de militarização da polícia. É constrangedor ouvir declarações do Ministro da Defesa comparando a utilização das tropas brasileiras na missão de paz no Haiti com o emprego da mesma em solo brasileiro. Até porque as regras de engajamento são distintas.
Teoricamente, cada brasileiro é reservista das Forças Armadas. O fato das Polícias Militares estaduais serem forças auxiliares é algo teoricamente normal durante regimes autoritários. Nas democracias, todavia, somente em período de guerra é que as forças policiais tornam-se forças auxiliares do Exército. Em tempo de paz, o Exército é quem passa a ser reserva da polícia, indo em sua ajuda quando esta não consegue debelar certos distúrbios sociais. O Exército, quando intervém, o faz na qualidade de representante do poder político, e nunca como se estivesse em guerra. Tanto é que os militares envolvidos nessas situações extraordinárias são julgados em tribunal civil por possíveis delitos cometidos. Para ficar constatado que não são uma tropa de ocupação e, sim, uma força a serviço do poder político civil. Esta é a doutrina elaborada por Lord Mansfield, em 1831, e implementada desde então na Inglaterra e demais países democráticos. Obviamente, isto não se aplica ao Brasil, em especial no Rio de Janeiro. O que não é surpresa, pois o Brasil é uma semidemocracia.
O governador deste estado já declarou que gostaria de ter a presença castrense durante o ano inteiro. O que é para ser excepcional tornar-se-ia rotineiro. Mais fácil do que arregaçar as mangas e enfrentar o grave problema interno dentro e fora das polícias é jogar a tarefa sobre os ombros do Exército. Afinal, esta Força, juntamente com suas congêneres, é a instituição laica com maior credibilidade no país. Numa clara prova da fragilidade das instituições civis, em especial, as coercitivas. Vários governadores parecem estar mais interessados em resolver seus problemas de governabilidade do que em solucionar a crise de segurança pública.
Um dos principais problemas que aflige a sociedade brasileira é o uso da violência, em grau epidêmico, no cotidiano de nossas vidas. A primeira função do Estado é impor a ordem garantindo a integridade física de seus cidadãos. No Brasil, no entanto, este pacto social está se diluindo progressivamente. Vive-se uma situação de guerra não-civil (uncivil war), ou seja, de todos contra todos. As "balas perdidas", que sempre "acham" alguém, são uma prova disto. À medida que aumenta o descrédito da população em relação ao desempenho das polícias, mais os governantes se sentem pressionados a solicitar ajuda aos militares federais no combate à criminalidade. Ressaltem-se os perigos que esta política de militarização da segurança pública pode acarretar. Aumentam e fortalecem as prerrogativas militares em um contexto de debilidade do controle civil; expõem as Forças Armadas a casos de corrupção, comprometendo a hierarquia e a disciplina dentro da instituição; e desprofissionalizam os militares que passam a fazer papel de polícia.
Adiciona, também, a possibilidade do uso arbitrário da violência, ensejando que "situações de emergência" surjam com mais freqüência. E que tais situações sejam resolvidas mais pela força do que pelas relações de poder. A coerção imparcial é, em si, um bem público, estando sujeita ao mesmo dilema da ação coletiva que procura resolver. À medida que seus poderes coercitivos são aumentados, os militares estarão mais tentados a fazerem uso desta força em proveito próprio a expensas do restante da sociedade. Demandando, conseqüentemente, novas arenas de poder. Além de formar um ciclo vicioso: verbas que poderiam ser usadas para reequipar e melhorar o desempenho das polícias são direcionadas para o emprego das Forças Armadas em atividades de policiamento.

A missão interna das Forças Armadas – Rubem Cesar Fernandes (Diretor-executivo da ONG Viva Rio e coordenador da área de pesquisa sobre violência urbana do Instituto Superior de Estudos da Religião. Graduado em Filosofia pela Universidade de Varsóvia e fez mestrado e doutorado em História do Pensamento Social pela Columbia University.)

O Brasil precisa pensar novamente sobre a missão interna das suas Forças Armadas. Vez por outra apelamos para elas, mas sempre na urgência, como num pedido de socorro – rebanhos contaminados de aftosa que atravessam as fronteiras do sul, milícias armadas que se apropriam dos processos eleitorais, um grande evento que se avizinha. É uma atitude de apaga incêndio que não faz justiça à gravidade da questão. A Constituição prevê uma responsabilidade das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, mas a matéria nunca foi regulamentada. Parece que o tema é ainda tabu. Que seja aberto. Que a Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, da Câmara Federal, abra o debate, com o vigor e a serenidade que merece.
Duas razões me levam a querer pensar novamente sobre o tema. A primeira remete às mudanças nas práticas criminais. Internacionalizaram-se, funcionam em redes que se cruzam, combinam o local e o global. O dinheiro do mercado de drogas, o poder das armas ilegais, as oportunidades do ilícito criam novos desafios. Deixar de lado os recursos das Forças Armadas, materiais e humanos, como se nada tivessem a ver com tudo isto, parece um tremendo desperdício. Ver quartéis do exército que são vizinhos de comunidades dominadas pelo tráfico ou pela milícia, parede com parede, e que seguem fechados em si mesmos, como se não vissem, nem ouvissem, o que se passa ao seu redor, parece absurdo.
Uma segunda razão resulta do que tenho visto no Haiti. Os militares sob a bandeira da ONU funcionam em colaboração com a Polícia Nacional do Haiti e o fazem bem. Tão bem que já se fala de outros países submetidos às Operações de Paz que pleiteiam um sistema similar e sob comando brasileiro. É o que se ouve do Timor Leste. A experiência do Haiti põe em suspenso uma outra tese antiga, de que os militares seriam treinados apenas para a guerra. Sob as normas da ONU e os olhares críticos de agências, governos e ONGs do mundo inteiro, os militares caminham por lá com um olho na segurança e o outro nos direitos humanos. Um pequeno abuso e a repercussão é imediata, global. Passam seis meses de treinamento preparatório, ainda aqui no Brasil, e vivem intensamente outros seis meses de prática no campo, em condições as mais difíceis, de bairros pobres e violentos, que, no entanto, não configuram propriamente um quadro de guerra. No mês de abril passado, assisti a uma semana de embates que tomaram toda a cidade de Porto Príncipe, no mais perfeito exemplo de caos urbano que já me foi dado presenciar. Muito tiro... com munição de borracha. Em resposta, do lado adverso, muita pedra, com manifestantes que evidentemente cuidavam para não escalar a virulência dos conflitos. Resultado: cinco dias se passaram de pau puro, mas nem um morto foi contado em Porto Príncipe. Resolveu-se o impasse pela mediação política, um primeiro-ministro se foi, e aos poucos, cinco meses depois, uma nova primeira-ministra se instalou, abrindo um novo capítulo na história contemporânea do país. É difícil, mas podia ser pior.
Longe de mim simplificar o argumento. É outro o nosso marco jurídico. Outra a situação. Abrir o debate implica enfrentar questões delicadas. Como ultrapassar o marco anterior que colocava o Exército em comando geral, reduzindo a autonomia das polícias? Sem autonomia, a polícia não é eficaz. Considerar a participação das Forças Armadas não deve significar uma diminuição dos poderes e competências das polícias. Se assim fosse, não passaria. A democracia conquistada com a Constituição de 1988 não admitiria este tipo de retrocesso sobre os poderes federados. Como então dividir funções, articular comandos, nas fronteiras externas e internas? São boas questões, que não podem ser tratadas à leviana, nem resolvidas na correria das emergências. Precisamos de um bom debate e o tempo é propício.

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