Em Fevereiro deste ano, publiquei este artigo na minha coluna do http://www.paraibaonline.com.br, e para minha tristeza algumas das questões que tratei nele tornam-se realidade pelas mãos do presidente da Venezuela Hugo Chávez.
"Para Chico Buarque não existe pecado do lado de baixo do Equador! Nós, latino-americanos, somos quase imunes aos acessos falsos moralistas anglo-saxões, mas, não somos afeitos à organização do mundo capitalista-presbítero. Aquela ética protestante e o tal espírito capitalista weberianos chegaram até nós atrasados e distorcidos ao ponto de, como diria Ruy Barbosa, sentirmos “... uma saudável nostalgia da escravidão”.
Foi assim que o modelo tocquevilliano de democracia – onde igualdade e liberdade são complementares e não excludentes – chegou-nos desvirtuado e mal ajambrado. Acontecimentos políticos de mais de um século demonstram isso: ditaduras e autoritarismos de toda sorte; repúblicas coronelistícas e militarizadas, populistas e/ou nacionalistas; revoluções e guerrilhas; democracias tuteladas e não consolidadas, sofrendo os malefícios causados por um pretorianismo ancestral.
Amparado nisto tudo, Hugo Chávez foi reeleito com mais de 61% dos votos, em que pese na Venezuela ele não ser obrigatório, para um mandato que vai até 2013. Ele fez uma campanha pedindo ao povo para não ter medo do socialismo, afirmando que vai “aprofundar a revolução bolivariana” e criar um “sistema de comunas” - projeto que acabaria com as 335 prefeituras e 24 estados, substituindo-os por conselhos comunais locais ligados ao Executivo. Propôs a reeleição indefinida, para perpertuar-se no governo acobertado por uma estrutura legal, desconsiderando que a alternância no poder é uma das condições para se ter democracia. Chávez tem uma visão utilitarista das instituições políticas e das normas que regem as relações diplomáticas entre nações. Controla a imprensa, o judiciário, o parlamento, os partidos, etc, e parece querer fugimorizar a Venezuela – fechando algumas instituições com o argumento (factível) de que elas agem contra os interesses do povo. Inclusive, sugeriu a criação de um "partido único da revolução". Seria nos moldes stalinistas do Partido Comunista da URSS?
Um dado sintomático disso, é que ele encaminhou à Assembléia Nacional o projeto da Lei Habilitante, que lhe permitirá governar por decreto por 18 meses. Tendo quase todos os deputados ao seu lado (a oposição boicotou as eleições de 2005, alegando manipulações no sistema eleitoral) não terá problemas para aprová-la. Assim, o parlamento permitirá a Chávez legislar sobre vários temas: reforma do Estado, participação popular, questões econômicas, sociais, financeiras, tributárias, jurídico-constitucionais, ordenamento territorial, segurança e defesa nacional.
Justificando os motivos para a concessão de tantos e ilimitados poderes a um só homem, o texto da lei diz que os decretos que tratam das questões econômico-sociais objetivam "transformar o paradigma econômico capitalista atualmente hegemônico". E mais: demonstrando o quão subserviente tornou-se ao poder executivo, o parlamento concedeu regime de urgência para aprovar o novo instrumento e, pelo projeto, os deputados só conhecerão as leis decretadas quando elas já tiverem sido publicadas no Diário Oficial. Chávez vai encarnar o próprio poder legislativo, passando por cima deste quando bem lhe aprouver. Seria uma espécie de poder moderador?
Transformações econômicas e sociais são necessárias neste capitalismo arcaico e subserviente existente na América Latina. Mas, porque tem que ser ao custo da democracia política?
Isso lembra a forma como os militares lidavam com o parlamento brasileiro durante nossa última ditadura. A diferença? Eles eram de direita e Chávez é de esquerda. A similaridade? A visão autoritária na condução do processo político. Convém não esquecer que Chávez tem uma profunda inserção nos meios militares, até por ser originário deles. E bem sabemos por que presidentes latino-americanos tentam manter boas relações com os militares. Já dizia Jânio Quadros: “Só tem uma coisa pior do que depender dos militares é não tê-los por perto quando necessário”.
Chávez é carismático, populista, pretoriano, caudilhesco, falastrão, debochado e militarizado. Mas, tem uma preocupação (aparentemente sincera) com as condições de vida do seu povo e quer seguir pela via cubana onde questões sociais são sempre prioritárias. Criou o Fundo de Desenvolvimento Nacional, com orçamento de US$ 6 bilhões, para promover um “crescimento endógeno” e iniciou a estatização de empresas de telecomunicações e energia. Vai, ainda, criar uma companhia aérea estatal e aumentar o financiamento para as cooperativas, que terão preferência nas compras e contratos do governo. E, óbvio, nacionalizará os investimentos de extração de petróleo e gás na bacia do rio Orinoco, pois, sendo a Venezuela o 5° maior produtor de petróleo do mundo, seria muito pouco inteligente negligenciar esta área estratégica para qualquer país.
Ele parece esperar (ou desejar) um conflito, pois tem gasto quantias significativas do PIB com equipamentos bélicos e garante que vai armar o povo para que este se auto-defenda de ameaças estrangeiras. No seu discurso de posse, afirmou bombasticamente que restam duas alternativas para a Venezuela: o socialismo ou a morte. O povo deve querer a primeira alternativa, tanto que o elegeu, mas será que aceita entrar em um processo onde só restará a segunda alternativa?
Hugo Chávez almeja suceder Fidel Castro na liderança da esquerda latino-americana. Já se vê comandando Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador), Tabaré Vasquez (Uruguai), Daniel Ortega (Nicarágua), etc, em uma cruzada contra os EUA. Parece ter desistido de tentar influenciar o presidente Lula que deixou claro sua postura independente, e, agora, investe em Néstor Kirchner (Argentina) e Michelle Bachelet (Chile) tentando conseguir suas simpatias. Importa, ainda, que Chávez explique o que pretende quando se reúne com Mahmoud Ahmadinejad (Irã) e Kim Jong-il (Coréia do Norte), homens que brincam com artefatos nucleares enquanto comandam seus países com mãos de ferro.
Chávez premedita suas atitudes. Chegando ao Rio de Janeiro, para a cúpula do MERCOSUL, disse (SIC) “ser o único capaz de descontaminar a América latina da doença mortal do neoliberalismo”. Precisava agradar a platéia, esquerdista, que foi lhe saudar como se fosse um Fidel Castro rejuvenescido. Para a imprensa, disse que vai construir o "socialismo do século XXI" e aprofundar o combate às desigualdades sociais. Ele tenta atualizar o discurso revolucionário de Che Guevara, propondo uma última guerra de independência na América Latina contra os EUA, e retoma a elaboração trotskista da revolução permanente – onde o poder constituído comanda o processo revolucionário e tenta expandi-lo para além de suas fronteiras territoriais. Para ele, o poder socialista só se mantém ao se difundir para outros países. Isolado, tende a perecer.
O socialismo chavista é capenga - deseja anular, ao invés de aprofundar, os canais da participação e representação popular. Concebe uma ampla transformação social, que vá inibindo os altos níveis de pobreza, mas prevê o fechamento dos canais democráticos da participação.
Através de suas ações e discursos, Chávez tem (re) colocado o velho (falso) dilema: para se ter reformas sociais, que melhorem a vida do povo e aumentem os níveis de igualdade social, é preciso abrir mão das liberdades políticas. Dito de outra forma: que só se vive na igualdade abrindo mão da liberdade. Retoma a estratégia da esquerda da década de 60 por não aceitar que ter igualdade sem amplas condições de liberdade é como amputar um membro do próprio corpo. Para ele, a democracia é tão somente sinônimo de igualdade social. Mas a demanda relevante de nosso tempo é aprender a lidar com os dilemas da democracia política, com os mecanismos, instituições e práticas associados a formas de decidir políticas que interessem a sociedade. É preciso saber valorizar e conviver com as práticas e normas que regem a vida dos partidos e organizações ou com as atitudes que marcam a relação entre estes e as instituições e entidades políticas da sociedade. Não adianta lutar contra a dominação imperialista, acabando com o oxigênio político de uma sociedade: a participação. Este foi o caminho que os bolcheviques russos tomaram e bem conhecemos o resultado: a instalação da ditadura de um partido e depois de um homem só.
Segundo o Instituto Latinobarômetro existem cerca de 140 países no mundo vivendo sob regimes democráticos. No entanto, só em cerca de 60 pode-se considerar que há uma consolidação da democrática. Ou seja, em menos da metade as possibilidades de haver reverses autoritários reduziram-se quase a zero. Muitos governos eleitos democraticamente apresentam uma acentuada tendência a manterem sua autoridade com métodos não democráticos. Utilizam-se de vários expedientes: modificam as constituições de seus países para benefício próprio, intervém nas eleições, restringem a independência dos outros poderes, além de não exercerem controle sobre as militares. Como vimos, este é o caso do intrépido presidente da Venezuela.
A democracia não pode ser reduzida ao ato eleitoral, em que pese ele ser condição necessária para se tê-la. Ela requer eficiência, transparência e eqüidade na atuação das instituições políticas. Exige, também, uma cultura política que aceite a legitimidade da oposição e que reconheça os direitos de todos. Não será negando estas condições em nome da melhoria de vida do povo que vamos abater as debilidades das democracias latino-americanas.
PS: Ao encerrar este artigo, vejo no noticiário que Assembléia Nacional da Venezuela aprovou a Lei Habilitante, permitindo Hugo Chávez governar por decreto pelos próximos 18 meses. A sessão parlamentar foi feita em praça pública, sob os auspícios da população e do Exército. É a Venezuela em marcha batida para a instalação de uma ditadura constitucional, como a que tivemos no Brasil, e extremamente personalista, como tantas havidas na América Latina."
Professor do Curso de História da Univ. Estadual da Paraíba desde 1993. Mestre em Ciência Política-UFPE e Doutorando em Ciência da Informação-UFPB. Especialista em História do Brasil, com ênfase na Era Vargas e na Ditadura Militar, na democracia e no autoritarismo. Autor dos livros "Heróis de uma revolução anunciada ou aventureiros de um tempo perdido" (2015) e “Do que ainda posso falar e outros ensaios - Ou quanto de verdade ainda se pode aceitar” (2024), ambos lançados pela Editora da UEPB.
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