Como demonstrei, este Blog tem, dentre outras, a função de compartilhar e divulgar informações que vou recolhendo e que considero relevantes. Por isso mesmo, estou publicando este artigo de Marcelo Gleiser (aquele mesmo que tinha uma série no Fantástico da Rede Globo sobre os grande cientistas e filósofos da humanidade), que saiu na Folha de São Paulo de ontem, 11/11/2007, e que trata dos mitos que facilmente enganam ou acomodam a prática de muitos. Boa leitura.
"A DIFÍCIL CONDIÇÃO HUMANA"
"Queremos saber mais do que podemos ver". Assim escreveu o filósofo francês Bernard Le Bovier de Fontenelle, em 1686. Seu livro tratava da possível existência de seres extraterrestres, à luz do conhecimento científico da época. Naquele mesmo ano, Isaac Newton, na Inglaterra, publicou o livro em que apresentou as leis de movimento e da gravitação. A realidade física passou a ser explicável a partir de equações determinísticas. Duas massas se atraem com uma força que age à distância. Newton não arriscou uma explicação para o misterioso fenômeno gravitacional: como massas se atraem sem se tocar? Forças invisíveis permeavam o espaço, a realidade estendendo-se além do que podemos ver. A ciência explicava e criava mistérios.Numa recente visita ao Brasil, inúmeras pessoas me perguntaram o que achava do filme "Quem Somos Nós?" ou dos livros de Amit Goswami e o absurdo "O Segredo". Todos oferecem uma visão alternativa ao materialismo comumente associado à ciência. Tudo é consciência, diria Goswami, e matéria e mente são manifestações dessa consciência. Se você pensar positivamente sobre sua vida, as coisas mudarão, mesmo que você não faça nada, aprendemos em "O Segredo". Gostaria que todos os moradores da Rocinha imaginassem um cheque de um milhão de reais chegando para cada um na semana que vem. A realidade é produto de nossas mentes e pode ser alterada, vemos em "Quem Somos Nós". No filme, aprendemos mecânica quântica com o espírito de Ramtha, um guerreiro de Atlântida que viveu há 35 mil anos. Talvez as pessoas devessem ser informadas que a maioria da equipe responsável pelo filme é devota de Ramtha. O filme é propaganda para essa seita esotérica. Os "especialistas" entrevistados são irrelevantes academicamente. Li na contracapa do livro de Goswami que ele é "um dos físicos mais importantes da atualidade". Absolutamente falso. A credibilidade da ciência é manipulada para convencer as pessoas da importância das novas revelações e dos novos "profetas". Por que esse esoterismo pseudocientífico faz tanto sucesso? O que as pessoas procuram nesses livros e filmes? Se seguirmos a história da ciência e sua relação com a religião, vemos que, após Newton, ficava difícil justificar a presença de um Deus onipresente em um mundo controlado por leis, equações e seleção natural. Por outro lado, a ciência nada oferecia para alimentar a necessidade espiritual das pessoas. Como conciliar o materialismo científico com o ódio, o amor, a morte? No início do século 20, a ciência mudou. A teoria da relatividade e a mecânica quântica redefiniram a realidade física, os conceitos de espaço, tempo e matéria. Apesar de essas teorias serem perfeitamente claras dentro de seu contexto, sua natureza filosófica, em particular, o papel do observador na prática científica, abre espaço também para especulações filosóficas, algumas iniciadas até por pioneiros da física quântica, como Heisenberg e Bohr. A apropriação dessas teorias pelo esoterismo é inevitável. É fácil deturpá-las para afirmar que a nova ciência põe a consciência humana no centro do cosmo; que o indivíduo tem uma força que vai além de seu corpo; que nossas mentes são conectadas com o cosmo e suas forças ocultas; que somos muito mais do que aparentamos ser. Quem não quer ser mais do que é? O sucesso do esoterismo pseudocientífico é reflexo da difícil condição humana, da dificuldade de sempre aceitar que somos seres limitados, com vidas finitas, num Universo que nada liga para nossa existência. E que temos de assumir a responsabilidade pelas nossas escolhas.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
Professor do Curso de História da Univ. Estadual da Paraíba desde 1993. Mestre em Ciência Política-UFPE e Doutorando em Ciência da Informação-UFPB. Especialista em História do Brasil, com ênfase na Era Vargas e na Ditadura Militar, na democracia e no autoritarismo. Autor dos livros "Heróis de uma revolução anunciada ou aventureiros de um tempo perdido" (2015) e “Do que ainda posso falar e outros ensaios - Ou quanto de verdade ainda se pode aceitar” (2024), ambos lançados pela Editora da UEPB.
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