Correio Braziliense - 22 de Agosto de 2008
Frei BettoEscritor
Autor de Calendário do poder (Rocco), entre outros livros.
O êxodo da população do bairro carioca de Vigário Geral, acossada pelo tiroteio entre traficantes e policiais, deixa sem aulas 3.071 crianças, fecha o comércio local, impede os moradores que ali permanecem de exercerem o direito elementar de ir e vir.
A frágil democracia brasileira se encontra ameaçada nas grandes cidades. À margem do Estado legal se expande e fortalece o Estado ilegal. A barbárie se faz presente lá onde o poder público se faz ausente. Quando muito, o Estado marca presença eventual como força repressiva, jamais como ente administrativo.
Em favelas, impera o narcotráfico, que coopta crianças e jovens, cobra proteção do comércio local, administra bailes e quadras de esportes, pune severamente quem transgride a lei do cão, e ainda presta assistência social a vizinhos, como internação hospitalar, compra de remédios, bolsas de estudo, consertos domiciliares e ampliação de barracos.
Nas periferias, as milícias, em geral dominadas por policiais, ditam normas e procedimentos: cobram pedágio dos moradores e comerciantes, controlam o fornecimento de gás, monopolizam o transporte em vans e microônibus, impõem aos eleitores seus candidatos.
Quanto mais omisso o poder público nessas áreas densamente povoadas por famílias de baixa renda, maior o império da barbariecracia — o regime da barbárie, que se impõe pelo terror.
Moradores de favelas e subúrbios, em sua imensa maioria, é gente honesta e trabalhadora, como constatei nos cinco anos em que morei na favela de Santa Maria, em Vitória. Porém, são desprotegidos como cidadãos. Não dispõem de áreas de lazer, esporte e cultura; as escolas são sucateadas, os professores mal remunerados (e ainda há governos que reagem ao piso nacional), o ensino é de má qualidade; o serviço de saúde agoniza; o saneamento é precário; o número de moradias construídas com financiamento público é ínfimo.
Basta mapear as obras do poder público, como a expansão do metrô carioca, para se constatar que a prioridade recai sobre a minoria da população de renda média ou alta. A parcela capaz de retribuir em dividendos eleitorais. É essa reduzida, mas poderosa faixa da população — formadora de opinião — que merece o melhor serviço público. O resto, considerada a inexistência do deus-dará, é empurrado às mãos dos meliantes.
Entre os municípios do Rio e São Paulo há pelo menos 2 milhões de jovens, de 14 a 24 anos, que não terminaram o ensino fundamental. Desse contingente procedem 80% dos homicidas e também 80% dos assassinados. O que comprova que a violência urbana não decorre da pobreza, e sim da falta de educação de qualidade.
Se o Estado se fizesse presente nessas áreas explosivas, por meio de escolas e cursos profissionalizantes, atividades esportivas e artísticas, com certeza o narcotráfico perderia força a médio prazo. Nem o próprio traficante deseja que seu filho lhe siga os passos.
E quando o governo fará uma ampla reforma nos critérios de seleção e formação de policiais civis e militares? Como se explica que, agentes do Estado, muitos cometam assassinatos, tráfico de armas e drogas, tortura e roubo de bens encontrados em mãos de bandidos?
Infelizmente, no Brasil cultura é luxo da elite. Basta conferir o orçamento do Ministério da Cultura. As poucas iniciativas dependem do mecenato de empresas que, raramente, investem no mundo dos pobres.
Esta é a mais perversa forma de privatização: a que cede aos traficantes e às milícias clandestinas o direito de agir como um Estado dentro do Estado. Como todos sabemos que eles não delimitam seu raio de ação às áreas de baixa renda, as classes média e alta se tornam reféns permanentes da barbárie, seja invadidas pelo pavor ao risco de violência, seja pelo compulsório confinamento às grades de suas moradias e à blindagem de seus veículos.
Imaginem se os R$ 60 bilhões gastos por ano em segurança privada no Brasil fossem investidos em educação de crianças e jovens em situação de risco e na formação de policiais íntegros!
Professor do Curso de História da Univ. Estadual da Paraíba desde 1993. Mestre em Ciência Política-UFPE e Doutorando em Ciência da Informação-UFPB. Especialista em História do Brasil, com ênfase na Era Vargas e na Ditadura Militar, na democracia e no autoritarismo. Autor dos livros "Heróis de uma revolução anunciada ou aventureiros de um tempo perdido" (2015) e “Do que ainda posso falar e outros ensaios - Ou quanto de verdade ainda se pode aceitar” (2024), ambos lançados pela Editora da UEPB.
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