A Constituição de 1988 foi a
efetivação de um grande pacto entre a ditadura que se encerrava e a democracia
que surgia. Vejam que os militares acusados de crime de tortura contra presos
políticos não foram punidos. Vejam que José Sarney (primeiro presidente civil
pós-ditadura) pertenceu sempre aos partidos que davam sustentação ao regime
militar – ARENA, PDS E PFL. É estranho que atores políticos relevantes do
regime autoritário tenham vindo servir a democracia.
Muitos membros da ditadura foram premiados
com cargos, mandatos e toda sorte de favores políticos e econômicos. Não é à
toa que a expressão “filhote da ditadura” denominava os que tinham um pé na
extinta ditadura e outro na nascente democracia. O fato é que se tínhamos uma
“Nova República”, ou um “novo sistema político”, era preciso ter uma nova
constituição que exprimisse não os interesses de um governo autoritário e sim
de um governo civil e democrático. Mas, isso só na teoria.
A Constituição de 1988 foi democrática
na forma, pois os deputados constituintes foram eleitos nos estados e todos os
seus artigos foram debatidos e votados nas Comissões e no Plenário, e foi
autoritária em seu conteúdo. Antigos personagens que deveriam sair da cena
política se utilizaram de estratégias para garantirem que não teriam interesses
e privilégios contrariados e que, mesmo retirando-se do governo, permaneceriam
com poder político de decisão.
Muitos dos “filhotes da ditadura”
aceitaram ter o bônus de estar no poder sem ter o ônus de ser do governo. Para
os militares federais foi um ótimo negócio, pois não mais precisariam se ocupar
das coisas do governo. Não foi a toa a expressiva participação que os militares tiveram (direta
ou indiretamente) na confecção da Constituição. Ex-ministros do período militar
(é o caso de Jarbas Passarinho) foram eleitos deputados constituintes. Jarbas
Passarinho foi da Comissão que discutiu o papel das Forças Armadas na “nova”
sociedade democrática que surgia. A preocupação, claro, era garantir que
governos civis não tentassem levar militares aos tribunais para responderem por
crimes de tortura.
A inspiração veio do Chile, onde o General Pinochet deixou o governo, mas
não deixou o sistema político. Na constituição, ele garantiu para si um mandato
vitalício de Senador e, consequentemente, manteve-se impune diante dos crimes
que cometeu enquanto era Presidente ditador.
Vejamos, então, exemplos do latente autoritarismo de nossa Carta Magna. O
Capítulo II (Das Forças Armadas) no seu Artigo 142 é um caso raro no mundo
inteiro em que militares ganham direitos constitucionais para intervirem na
ordem política e social. Ao invés de terem suas funções restritas à defesa do
país contra ameaças externas, os militares federais garantiram um efetivo poder
de participação na vida política do país.
Vejamos o que diz artigo 142: “As Forças Armadas são instituições
nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na
disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se
à defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de
qualquer destes, da lei e da ordem”. O Parágrafo 1° desse artigo atribui a uma
Lei Complementar o estabelecimento das normas que regerão a organização, o
preparo e o emprego das Forças Armadas. Assim, não fica claro em que, e para
que, as Forças Armadas serão empregadas.
Não ficou
esclarecido se o papel das forças armadas seria interno (exercendo um papel de
polícia) ou apenas externo, cuidando das fronteiras para prevenir ameaças
vindas de fora. É por isso que muitos
não entendem porque o Exército Brasileiro mantém mais efetivos em cidades como
Rio de Janeiro e São Paulo do que na vasta fronteira amazônica que volta e meia
é ameaçada de invasão por traficantes e guerrilheiros.
Não deixa de ser temerário termos, num país
com uma história política autoritária como o nosso, um dispositivo que permita
que um determinado poder solicite às Forças Armadas que garantam a lei e a
ordem e os próprios poderes constitucionais. Sendo os militares detentores do
poder armado não é impossível que possam submeter outros poderes a seus
interesses, sejam eles coorporativos e/ou de grupos econômicos e políticos.
A Constituição Cidadã manteve as
prerrogativas que os militares só poderiam ter em um período ditatorial.
Legalmente falando eles podem intervir na ordem pública se a considerarem em
perigo. Em breve eu voltarei a tratar da Constituição de 1988 falando desses e
outros aspectos, sempre na perspectiva que nossa Constituição deve ser
melhorada, aprimorada, e não deturpada ou mesmo achincalhada.
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