Há cerca de quatro anos o Supremo Tribunal Federal (STF)
foi chamado a se posicionar sobre os limites da Lei da Anistia. O STF teria que
dizer quem de fato ela perdoou e o que poderia acontecer com quem ela não
absolveu. Já a Advocacia Geral da União (AGU) afirmou que “estão perdoados os
crimes de tortura cometidos durante a ditadura”. A AGU apegou-se a tese de que
a Anistia é "ampla, geral e irrestrita" e que delitos cometidos na ditadura
prescreveram. No STF, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que punir torturadores
traria insegurança jurídica ao país. O Ministro e a AGU parecem temer que alguns
acusados não aceitem que devem (precisam) ser julgados de forma passiva.
Na transição da ditadura para a Nova República
estimulou-se a tese do esquecimento e do não revangismo, de deixar velhos
problemas para trás e só se olhar para frente. Boa parte da sociedade comprou a
ideia de um grande pacto em nome da democracia. Foi no governo do Gal.
Figueiredo que se encaminhou a Lei da Anistia para o Congresso Nacional. Como
ele não reconhecia a tortura como um delito, ela não apareceu no texto final da
lei. Ou seja, se não houve crime de tortura não há do que se anistiar.
Os governos de FHC, Lula e Dilma se dividiram em
torno da matéria. De um lado, temos os que pedem a revisão da Lei da Anistia e
a punição para quem, por exemplo, torturou e matou em nome do Estado. Do outro lado
há os que dizem que a anistia foi fruto de uma negociação entre a sociedade
civil e o regime militar. É comum se lembrar do pacto feito para que ambos os
lados tivessem como lema o esquecimento, e que só assim foi possível à
democracia.
Para a AGU as convenções
e tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, que têm a tortura
como imprescritível se submetem à Constituição Federal. Ela entende que não
interessa posições assumidas no passado se elas estão em desacordo com leis
atuais. É a AGU que defende a União no processo aberto pelo Ministério Público
Federal para punir os militares reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir
Maciel por tortura, morte e ocultação de 64 cadáveres durante a ditadura.
No governo os favoráveis
a punição são minoria. A presidente Dilma Rousseff, por ser ex-presa política,
tendo sido submetida à tortura, se mostra a favor da punição. Mas, a AGU, o Ministério
da Defesa, a Controladoria Geral da União e o Itamaraty são contra. Dilma
afirma que na Lei da Anistia não foram contemplados os agentes que, durante a
ditadura, cometeram lesão corporal, estupro, homicídio, ocultação de cadáver e
tortura.
Mas, a AGU diz que não dá
para responsabilizar pessoas pelos delitos. A AGU concorda com a tese do
ex-ministro Nelson Jobim, segundo a qual: “nem a repulsa que nos merece a
tortura impede reconhecer que se deve dar toda a amplitude ao esquecimento
penal desse período negro da nossa história". A União é ré na questão da abertura dos arquivos da
ditadura e já foi sentenciada a tornar público documentos do período. A
Comissão da Verdade tem árdua tarefa nesse sentido.
Mas, a questão é complexa. FHC alterou a legislação
para o acesso público a documentos oficiais. Ele ampliou para 50 anos o prazo
de divulgação de documentos tidos como “ultrassecretos” e oficializou o sigilo
eterno, possibilitando, ainda, que uma Comissão Interministerial renove o prazo
de confidencialidade sem restrições de tempo.
Lula alterou a lei, mas manteve sua essência
autoritária. Ele reduziu o prazo de divulgação dos documentos “ultrassecretos”
de 50 para 30 anos, mas prevendo uma renovação por mais 30 anos. Ou seja, os
documentos podem ficar até 60 anos sem que a sociedade tenha acesso a eles.
Lula manteve a Comissão
Interministerial e o sigilo de
documentos que possam ameaçar a soberania nacional.
Numa palavra, ao meio-século imposto por FHC, Lula acresceu
mais 10 anos. Sob um verniz democrático, temos uma espessa camada autoritária que
impede que a sociedade civil tenha acesso às informações. FHC e Lula, que
concordam que nossa democracia está consolidada, não caminharam no mesmo
sentido da Argentina, por exemplo, que abriu seus arquivos a toda sociedade e
eles serviram de provas para que muitos fossem punidos.
Se não temos mais ameaças de um revés autoritário
só nos resta abrir os arquivos da ditadura e revolver nosso passado
autoritário. Importa menos o que vamos lá descobrir. O que interessa é que
tenhamos acesso em definitivo a esses documentos, pois se esquecer do passado
sem que ele esteja resolvido é grave, imagine o quão perigoso é fechar os olhos
para erros cometidos no presente?