sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Ditaduras ditam, não pedem.









Contam que Emílio e Augusto, presidentes quando ditaduras eram comuns na América Latina, conversavam quando Emílio perguntou a Augusto se ele seria capaz de torturar, matar e ocultar o corpo de um dissidente político como forma de calar a oposição e permanecer no poder. Augusto não titubeou e disse que sim, que o faria. Emílio, então, perguntou se ele faria o mesmo com 30.000 pessoas. Augusto, indignado, perguntou: “O que você pensa que sou?” Emílio respondeu: “Já foi definido que somos ditadores, meu caro. Apenas vamos tratar de métodos e quantidades”.






Certo, o diálogo é falso. Mas, é que volta e meia a quem queira discutir se a ditadura militar brasileira foi mais branda ou mais dura do que a do Chile, por exemplo. Na verdade se houve um governo constitucional deposto houve um golpe. Se se cassou mandatos e se subjugou poderes; se se ditava atos e decretos-lei; se partidos foram extintos; se não havia liberdade de imprensa, associação e expressão; se pessoas foram torturadas e mortas, então houve uma DITADURA.






Importa pouco discutir se a ditadura no Brasil foi mais ou menos branda do que a do Chile ou da Argentina. Só se é ditatorial a partir de certo número de mortes provocadas? Pode-se aniquilar opositores e seguir democrático? Faz 27 anos que o regime militar implantado em 1964 acabou e nós ainda não sabemos bem como lidar com nosso passado autoritário. Nosso passivo ditatorial não foi contabilizado ao contrário de outros países da América Latina.






Ainda discutimos se devemos ou não rever a Lei da Anistia. Ainda temos dúvidas se os que torturaram e/ou mataram a serviço do Estado devem ser punidos. Seguimos sem saber o que fazer com todas as informações e documentos disponíveis sobre a época. O Ministro Gilmar Mendes afirmou que revisar a Lei da Anistia traz instabilidade ao Estado de Direito. E eu pergunto se não seria investigando os crimes de tortura e morte, e punindo os culpados, que estaríamos solidificando o Estado de Direito e a democracia?






Nossas fragilidades institucionais parecem impedir uma verdadeira varredura nos atos do regime militar. Vejam que democracias eleitorais, como a nossa, reviraram suas ditaduras e em nenhuma delas se viu a derrocada do Estado de Direito. Na Argentina a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas investigou os crimes da ditadura. Membros de 4 juntas militares, que presidiram o país entre 1976 e 1983, foram julgados, condenados e estam cumprindo pena.










A Marinha argentina chegou a admitiu que sequestrou, torturou e assassinou cidadãos. Houve até instabilidade institucional, mas não quebra do Estado de Direito. Em sete anos a ditadura argentina matou 30.000 pessoas. Nos Brasil, foram 635 mortos em 21 anos. Os militares de lá têm bem mais coisas a esconder, mas isso não dificultou o empenho dos argentinos em resolver seu passivo autoritário. Os julgamentos dos militares portenhos acontecem na justiça federal, utilizando-se o código penal.






No Brasil, os militares continuam a ter a Justiça Militar como foro privilegiado – eles são julgados pelos seus pares. Como se vê a questão não se restringe a quantidades, e sim a substância que se quer que a democracia tenha. No Uruguai o parlamento revogou a lei que anistiou militares torturadores. No Chile, a Comissão da Verdade e Reconciliação revolveu a ditadura Pinochet e o Exército e a Marinha admitiram que torturaram presos políticos. O Chile tem hoje sólida democracia.






Em El Salvador a Comissão da Verdade responsabilizou o Exército pelo massacre de El Mozote. Na Guatemala uma Comissão de Esclarecimento Histórico responsabilizou militares pela matança contra índios. Mas, esses países não voltaram ao autoritarismo. Mas, no Brasil se insiste na tese da ameaça ao Estado de Direito. Na Argentina e no Chile houve reconciliação (não esquecimento), pois os fatos foram admitidos e os culpados punidos. É assim que o Estado de Direito se sobrepõem ao “direito” da força.






Não rever a Lei de Anistia, isentando de punição os que, a serviço do Estado ditatorial, cometeram crimes de tortura, morte e ocultação de cadáver é uma forma de apagar a história, pois os crimes são imprescritíveis e passíveis de penalidades. Pouco importa que tenham sido 635 mortos no Brasil contra 30.000 na Argentina. Tivéssemos uma única morte e teríamos que apurá-la sob pena de continuarmos sem saber lidar com nosso passado.






O fato é que o Estado usou seu poder de coerção para aniquilar pessoas. Se soubermos as circunstâncias em que os fatos ocorreram poderemos aceitar a ditadura como coisa do passado. Não adianta pagar grandes quantias, a título de indenização, às famílias das vítimas e impedir que a verdade venha à tona. Muito já se disse que melhor é não reabrir as feridas. Mas, o fato é que eles não cicatrizaram. É por isso que mortos e desaparecidos do regime militar volta e meia ressurgem como renitentes fantasmas.