Contam que Emílio e Augusto, presidentes quando
ditaduras eram comuns na América Latina, conversavam quando Emílio perguntou a Augusto
se ele seria capaz de torturar, matar e ocultar o corpo de um dissidente
político como forma de calar a oposição e permanecer no poder. Augusto não
titubeou e disse que sim, que o faria. Emílio, então, perguntou se ele faria o
mesmo com 30.000 pessoas. Augusto, indignado, perguntou: “O que você pensa que
sou?” Emílio respondeu: “Já foi definido que somos ditadores, meu caro. Apenas
vamos tratar de métodos e quantidades”.
Certo, o diálogo é falso. Mas, é que volta e meia a
quem queira discutir se a ditadura militar brasileira foi mais branda ou mais
dura do que a do Chile, por exemplo. Na verdade se houve um governo
constitucional deposto houve um golpe. Se se cassou mandatos e se subjugou
poderes; se se ditava atos e decretos-lei; se partidos foram extintos; se não
havia liberdade de imprensa, associação e expressão; se pessoas foram torturadas
e mortas, então houve uma DITADURA.
Importa pouco discutir se a ditadura no Brasil foi
mais ou menos branda do que a do Chile ou da Argentina. Só se é ditatorial a
partir de certo número de mortes provocadas? Pode-se aniquilar opositores e
seguir democrático? Faz 27 anos que o regime militar implantado em 1964 acabou
e nós ainda não sabemos bem como lidar com nosso passado autoritário. Nosso
passivo ditatorial não foi contabilizado ao contrário de outros países da
América Latina.
Ainda discutimos se devemos ou não rever a Lei da
Anistia. Ainda temos dúvidas se os que torturaram e/ou mataram a serviço do
Estado devem ser punidos. Seguimos sem saber o que fazer com todas as
informações e documentos disponíveis sobre a época. O Ministro Gilmar Mendes afirmou
que revisar a Lei da Anistia traz instabilidade ao Estado de Direito. E eu
pergunto se não seria investigando os crimes de tortura e morte, e punindo os culpados,
que estaríamos solidificando o Estado de Direito e a democracia?
Nossas fragilidades institucionais
parecem impedir uma verdadeira varredura nos atos do regime militar. Vejam que democracias
eleitorais, como a nossa, reviraram suas ditaduras e em nenhuma delas se viu a
derrocada do Estado de Direito. Na Argentina a Comissão Nacional sobre o
Desaparecimento de Pessoas investigou os crimes da ditadura. Membros de 4
juntas militares, que presidiram o país entre 1976 e 1983, foram julgados, condenados
e estam cumprindo pena.
A Marinha argentina
chegou a admitiu que sequestrou, torturou e assassinou cidadãos. Houve até
instabilidade institucional, mas não quebra do Estado de Direito. Em sete anos a ditadura argentina matou 30.000 pessoas.
Nos Brasil, foram 635 mortos em 21 anos. Os militares de lá têm bem mais coisas
a esconder, mas isso não dificultou o empenho dos argentinos em resolver seu
passivo autoritário. Os julgamentos dos militares portenhos acontecem na
justiça federal, utilizando-se o código penal.
No Brasil, os militares continuam a ter a Justiça
Militar como foro privilegiado – eles são julgados pelos seus pares. Como se vê
a questão não se restringe a quantidades, e sim a substância que se quer que a
democracia tenha. No Uruguai o
parlamento revogou a lei que anistiou militares torturadores. No Chile, a
Comissão da Verdade e Reconciliação revolveu a ditadura Pinochet e o Exército e
a Marinha admitiram que torturaram presos políticos. O Chile tem hoje sólida
democracia.
Em El Salvador a Comissão da Verdade responsabilizou
o Exército pelo massacre de El Mozote. Na Guatemala uma Comissão de
Esclarecimento Histórico responsabilizou militares pela matança contra índios. Mas,
esses países não voltaram ao autoritarismo. Mas, no Brasil se insiste na tese
da ameaça ao Estado de Direito. Na Argentina e no Chile houve reconciliação
(não esquecimento), pois os fatos foram admitidos e os culpados punidos. É
assim que o Estado de Direito se sobrepõem ao “direito” da força.
Não rever a Lei de Anistia, isentando de punição os
que, a serviço do Estado ditatorial, cometeram crimes de tortura, morte e
ocultação de cadáver é uma forma de apagar a história, pois os crimes são
imprescritíveis e passíveis de penalidades. Pouco
importa que tenham sido 635 mortos no Brasil contra 30.000 na Argentina.
Tivéssemos uma única morte e teríamos que apurá-la sob pena de continuarmos sem
saber lidar com nosso passado.
O fato é que o Estado usou seu poder de coerção
para aniquilar pessoas. Se soubermos as circunstâncias em que os fatos
ocorreram poderemos aceitar a ditadura como coisa do passado. Não adianta pagar
grandes quantias, a título de indenização, às famílias das vítimas e impedir
que a verdade venha à tona. Muito já se disse que melhor é não reabrir as
feridas. Mas, o fato é que eles não cicatrizaram. É por isso que mortos e desaparecidos
do regime militar volta e meia ressurgem como renitentes fantasmas.