quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

NÃO EXISTE HONRA NA TORTURA

É sempre a mesma coisa. Recebo muitas mensagens, algumas anônimas, quando trato da tortura, praticada pelo Estado durante a ditadura militar, e quando analiso os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que acaba de divulgar seu relatório final. Quando discordo da ideia de que só uma intervenção militar seria capaz de moralizar o Brasil e quando defendo que agentes públicos torturadores devem ser punidos o gilbergues@gmail.com recebe mensagens, algumas elogiosas outras nem tanto. Ontem, depois que tratei do fato de Jair Bolsonaro ter dito que a deputada Maria do Rosário “não merece se estuprada porque é muito feia", recebi uma mensagem de um ouvinte anônimo concordando com as ideias do deputado hitlerista.

Certa vez, um anônimo raivoso me mandou uma mensagem dizendo que as mulheres, que lutaram contra a ditadura militar, só foram torturadas e violentadas porque abandonaram filhos, pais e maridos para pegar em armas. Segundo este ouvinte, sem identidade, se essas mulheres tivessem ficado em suas casas nada disso teria acontecido. Esse argumento é idêntico ao de Jair Bolsonaro que diz que o homem estupra a mulher porque ela o provoca com sua beleza. Não me incomodam os comentários desses ouvintes anônimos. Até fico feliz, pois como vivemos em uma democracia, eles podem dizer o que pensam, mesmo que não venham à luz do sol. O que eles não entendem é que o anonimato é próprio das ditaduras.

Com a divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade temos dois dilemas. Um, verdadeiro, trata do que faremos com os responsáveis por crimes durante a ditadura. O outro, falso, é se existe alguma justificativa plausível para a tortura. Devemos enfrentar nossas verdades, mesmo que alguns queriam mistificá-las, deturpá-las, desmerece-las. Os responsáveis por crimes durante a ditadura militar devem mesmo ser responsabilizados judicialmente. Todos eles! É preciso não tergiversar.


Mas, essa discussão tem que passar ao largo das paixões mal humoradas daqueles que tem alguma coisa a temer ou que nutrem algum tipo de saudosismo ideológico dos tempos em que prender, torturar, matar e fazer corpos sumir era coisa natural. Muitos dos que enfrentaram o regime militar com armas, ou não, foram processados em tribunais militares de exceção. Muitos cumpriram longas penas ou foram condenados ao exílio para que sobrevivessem à violência do Estado ditatorial. Passados quase 30 anos do fim da ditadura militar não se tem notícia de um único torturador que tenha sido punido por um crime que é tido como de lesa humanidade. Os “Bolsonaros” e “Lobões” da vida dizem que “ninguém era santo na época do regime”.
 
Um desses ouvintes sem nome me disse que “a esquerda não lutava pela democracia, e sim por uma ditadura do proletariado”. De fato, foi assim mesmo. Entre as décadas de 1960/1970 democracia, no Brasil, valia tanto quanto um ventilador na Sibéria. As organizações de esquerda pegaram em armas para reagir da forma que poderiam e queriam. Essa era a linguagem da época. A questão é: porque pendurar um cidadão num pau-de-arara, de cabeça para baixo, para aplicar choques em seu corpo despido? Sabe por que o Estado que tortura e mata seu cidadão está cometendo um crime, independente do que ele tenha feito? O Estado detém o monopólio da força, do uso da violência e da coerção para garantir a lei, não para exterminar seus adversários.

O discurso de que há alguma justiça na tortura é perigoso e, no limite, legitima a pratica da tortura estatal. Agora mesmo vemos os EUA enfrentando a questão com o relatório do Comitê de Segurança do Senado que atesta que a CIA torturava seus presos. Os americanos fazem o mesmo que nós. Ao invés de condenarem esse crime hediondo, discutem se a tortura é ou não eficaz na aquisição de informações contra o terrorismo. Aqui, gostamos de dizer que a tortura é um eficiente mecanismo de investigação. Na época da ditadura havia dois tipos de tortura. A boa, que resultava em informações que levariam a prisão de subversivos, e a ruim que não gerava informações. Tortura inútil era aquela em que o preso morria sem nada revelar.
 
A ideia de que o preso politico, ou o bandido comum, só “abre o bico” se levar uns tapas, choques ou ficar pendurado num pau-de-arara é sórdida porque apela para necessidades sentidas por aqueles que sofreram algum tipo de violência. O Estado que usa a violência, para extrair confissões, atesta sua incompetência em lidar com os que querem subverter a ordem ou viver a margem da lei. A coerção é um monopólio legal do Estado. Já a tortura é um monopólio não institucional estatal. O Estado militarizado usou e abusou da tortura para alcançar as verdades que lhe interessava, mas nossa sociedade, de procedimentos democráticos, não consegue fazer valer outras verdades por meios legais. Apesar de que, eu tenho certeza de que é melhor viver assim do que do outro jeito.

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AQUI É O POLITICANDO, COM GILBERGUES SANTOS, PARA A CAMPINA FM.

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