Charge do cartunista Laerte. Revista Caros Amigos - Ano IV - n° 15 - Novembro/2002.
Edição
Especial “Para onde vai a democracia?”
Fala-se que Pirro, rei do Épiro na Grécia, disse, ao
ganhar a batalha do Ásculo no ano 208 a.C., que outra vitória daquela e ele
estaria perdido. Pirro se referia a quantidade de guerreiros que viu morrer e ao
fato de não ter mais onde recrutar soldados. É por isso que se diz, quando uma
vitória é obtida a um alto preço e com graves prejuízos, que se teve uma “vitória
de Pirro”. Assim estamos nós em relação ao sistema democrático que temos.
Não vivemos mais em uma ditadura. Ganhamos a
batalha contra o autoritarismo. Avançamos em muitos aspectos. Mas, a que preço?
O que conseguimos levar dessa vitória? Temos uma democracia sólida? Vivemos em
uma democracia de procedimentos, recheada de formalismos, mas nossa cultura
política é herdeira das prerrogativas que as ditaduras que tivemos no século XX
nos legaram. O nosso “custo democracia” é muito alto e os benefícios são muito
baixos.
Antes que alguém pense que eu prefiro algum tipo de
sistema autoritário, quero dizer que a mais deficiente das democracias é sempre
melhor do que a mais eficiente das ditaduras. Mas, a falta de qualidade de
nossa democracia é gritante.
Ouvimos o tempo todo que a democracia brasileira
está consolidada. Afirma-se que eleição é a festa da democracia. Festa? Como
assim? Eleição é o processo pelo qual escolhemos nossos representantes. Simples
assim.
Por que, depois de tantas eleições, com alternância
no poder (que é condição necessária, apesar de insuficiente, para se ter
democracia), continuamos a tratar este momento como algo inusitado? Como algo
raro. Temos eleições a cada dois anos, mas elas são aguardadas e tratadas como
uma Copa do Mundo, como se fossem um cometa que nos visita a cada cem anos.
Assim, temos mesmo que tratar as eleições como uma grande festa.
A realidade desmente os desprovidos
de cautela, os que apressadamente proclamam que nossa democracia é sólida. Nós não temos, neste momento, ameaças de uma volta
a um passado autoritário. Mas, isso é tudo?
Nossa democracia tem deficiências que as eleições
que acompanhamos fazem aflorar. Vejamos exemplos, quem sabe se não nos convencemos
do óbvio ululante. E vejam que não vou falar de fatos isolados, mas de coisas que ocorrem a cada nova
eleição. Vejamos a presença das Tropas Federais nas ruas no dia das eleições.
Se nossa democracia é sólida, as urnas é que deveriam assegurar as armas, não o
contrário. Como na época da ditadura, seguimos recorrendo a força para garantir
procedimentos formais.
Nas eleições de 2010 e nas deste ano traficantes e
milicianos, em pontos da cidade do Rio de Janeiro, usavam e usam uma espécie de
“tabela” com valores que variam entre 10 e 30 mil reais a serem pagos por
candidatos que buscam votos nos domínios deles. Em 2010, tivemos em Campina
Grande denuncias dando conta do envolvimento promíscuo de candidatos a cargos
eletivos com traficantes. Sabemos que em alguns locais foi imposta a lei do
silêncio para que certos candidatos fossem beneficiados.
O nosso estado de direito é tão frágil que precisa
das Forças Armadas para garantir princípios e direitos do cidadão, como o de ir
e vir e o de expressar opiniões. Não bastam as instituições coercitivas como a
Polícia Militar? Precisamos mesmo daqueles que são treinados para a guerra?
Cada um de nós tem pelos menos uma história para
contar acerca do comportamento pouco republicano de muitos candidatos que
descem ao submundo dispostos a tudo para se elegerem e assim viverem às custas
dessa generosa mãe que é o Estado brasileiro.
Nós sabemos que as definições sobre as coligações
partidárias e sobre quem será candidato passam bem mais pelos espaços privados (familiares
até) e bem menos pelos espaços públicos das instituições que por certo deveriam
nos representar.
Entre os meses de maio e junho estabeleceu-se um
mercado, não de produtos, mas de siglas partidárias. Era a dança das
agremiações. Teve partido que circulou por entre quase todas as candidaturas
até que se batesse o martelo e terminasse o leilão.
O cientista político norte-americano Scott
Mainwaring definiu, num artigo chamado “Classificando Regimes Políticos na
América Latina”, que para que um sistema político seja considerado minimamente
democrática precisa ter cinco componentes básicos. Seriam eles: (1) a promoção
de eleições competitivas, livres e limpas para o legislativo e o executivo; (2)
a existência de uma cidadania adulta e abrangente; (3) ampla proteção às liberdades
civis e aos direitos políticos; (4) governos eleitos e de fato governando; (5)
a existência de um efetivo controle dos civis sobre os militares.
Eu sugiro que o caro ouvinte tente verificar se nós
temos, aqui mesmo em nossa cidade, pelo menos metade dessas condições. Se você chegar
às mesmas constatações a que chego diariamente tenha certeza que nosso sistema político
está muito longe de ser uma sólida democracia.