Nos tempos da
Guerra Fria, quando vivíamos sob o tacão de uma ditadura, imperavam a Doutrina
e a Lei de Segurança Nacional. Na época, o mundo era dividido em dois grandes
blocos – o capitalista, do lado ocidental, e o comunista, do lado oriental. A
Doutrina de Segurança Nacional foi elaborada nos EUA, no final da década de 40
do século XX. O presidente Harry Truman defendia que o chamado “mundo livre”
necessitava de mecanismos que pudessem conter o avanço comunista pelas
Américas. No Brasil, o Gal. Golbery do Couto e Silva elaborou, após o golpe de
64, a tese de que havia um inimigo interno, agindo sob influências externas,
que deveria ser combatido. Para ele, focos de perturbação social deveriam ser
militarmente atingidos.
Recentemente, quando da aprovação da Lei Geral da Copa, pelo Congresso
Nacional, o Ministério da Defesa regulamentou como as Forças Armadas devem agir
caso sejam convocadas, pela presidência da República, para atuar em distúrbios
sociais e políticos. Causou estranheza que o Ministério tenha incluído, no rol
das chamadas “forças oponentes”, movimentos e organizações político-sociais. O
estranhamento cresce quando se vê o que e quem compõem essa lista de oponentes
do Estado brasileiro. A lista é composta por organizações criminosas,
traficantes de drogas, contrabandistas de armas e grupos armados. O PCC,
organização criminosa que atua fora e dentro de presídios de São Paulo,
encabeça a lista dos oponentes do regime em que vivemos.
O que se sabe é que a nomenclatura “forças oponentes” foi criada para que
se pudesse enquadrar manifestantes políticos que vão, ou iam, as ruas protestar
contra, por exemplo, a realização da Copa da FIFA e os transportes públicos. A
questão, aqui, é porque um instrumento coercitivo, nitidamente inspirado na
Doutrina de Segurança Nacional dos tempos da ditadura militar, enquadra num
mesmo patamar o traficante de drogas e o manifestante político? Vivemos em uma
democracia, frágil, mas uma democracia, que continua a se utilizar dos
mecanismos de controle social e político, tão bem explorados nos tempos do
regime ditatorial que prendia, torturava e assassinava seus opositores. A
questão é: por quê?
Foi a partir da MINUSTAH, a Missão das Nações Unidas para a estabilização
do Haiti, que o Ministério da Defesa regulou o uso das Forças Armadas nas chamadas
Operações de Garantia da Lei e da Ordem, ou GLO. A GLO começou a ser posta em
prática a partir de 2010 com as ações de pacificação do Complexo do Alemão, no
Rio de Janeiro. Na Copa das Confederações ela foi praticada, pois entre junho e
julho de 2013 vivíamos o auge das manifestações políticas. A ideia de aplicar a
GLO no combate as “forças oponentes” não é, como já vimos, uma novidade.
Partindo de premissas existentes há tanto tempo se aplica um método de combate
renovado na prática, mas que se mantém fiel ao seu antigo modelo.
O plano de Garantia da Lei e da Ordem foi revisto para prever
manifestações e conturbações politico, sociais e criminosas na Copa do Mundo.
Apesar de que, não foi necessário, pois todo mundo quer assistir a Copa,
inclusive a marginalidade organizada. A GLO prevê que militares federais atuem,
como última alternativa, em caso de incapacidade das polícias, a pedido dos
governadores e por ordem da presidência da República. E eles devem atuar
limitados a um determinado local e com tempo definido. Nas operações, unidades
das polícias do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, além dos fuzileiros
navais, devem agir usando armas não letais. A título de comparação, nos Jogos
Olímpicos de Londres, em 2012, houve o aquartelamento de tropas.
A ideia era que as tropas fossem utilizadas em caso de ataques terroristas
que pusessem em risco a vida de atletas e chefes de Estado. O governo inglês
nunca cogitou a possibilidade de colocar tropas federais para combater
manifestações de ordem política. No Brasil, o governo coloca problemas sociais,
políticos e criminais na vala comum da segurança pública e, ainda aplica sobre
ela, a metodologia da Doutrina de Segurança Nacional se baseando no plano de
Garantia da Lei e da Ordem. O professor Expedito Bastos, pesquisador de
assuntos militares da Universidade Federal de Juiz de Fora, disse que a GLO é
tão somente um material padrão do Ministério da Defesa para normatizar a
utilização das Forças Armadas em operações.
O professor Bastos confirma que a Garantia da Lei e da Ordem é fruto das
experiências no Haiti. Ele diz que não vê nada de excepcional na GLO e que o
papel constitucional das Forças Armadas está respaldado na resolução do
Ministério da Defesa. Mas, o diretor executivo da Anistia Internacional no
Brasil, Átila Roque, discorda e afirma que o texto é "vago, arbitrário e potencialmente danoso à democracia".
Atila lembra o perigo de se criminalizar questões políticas e sociais. O fato é
que não importa o que esteja acontecendo nas ruas, o método para conter os
conflitos será sempre o mesmo. Podem ser estudantes fazendo manifestações, com
quebra-quebra, pode ser o PCC atacando a polícia, a GLO será usada da mesma
forma. A questão não é se devemos ou não combater este ou aquele problema. A
questão é como vamos fazê-lo. O fato, é que o Estado brasileiro não conseguiu,
ainda hoje, definir quem são seus reais inimigos. Daí se aplica a GLO seja no
estudante seja no traficante.